...os médicos diziam que um ser humano normal aguentava até seis dias sem dormir, e depois disso havia sequelas e a coisa só piorava. Mas isso era antes da Constituição de 28 redefinir o que é um ser humano normal. Azar dos antigos livros de medicina e azar o da Lei: faz duas semanas que eu não prego o olho, desde que o Basi tentou me enrabar, e uma bomba no pescoço e um experimento científico psicótico sentado do meu lado continuam me deixando bem acordado.
Ok, eu explico: desde a Dolly, os cabeções dos laboratórios dos grandes países estão tentando uma forma efetiva de clonagem. Faz um par de décadas que anunciaram os primeiros humanos clonados e a reconstrução mundial parecia estar indo em uma direção aceitável com a descoberta. Uma fartura de órgãos para transplante e a repovoação do planeta apontavam para o sucesso, mas como quase tudo que o Homem faz se estraga a longo prazo, a merda agarrou quando os primeiros clones demonstraram transtornos obsessivo/homicidas que os faziam tentar tomar o lugar de seus modelos originais. Quando um clone sem fígado e rins do presidente americano tentou tirar a Dinamarca (não me pergunte por que logo a Dinamarca) do mapa com um ataque nuclear, decidiram que era hora de eliminar a ameaça e iniciaram uma “Guerra dos Clones” por debaixo dos panos (tudo bem, foi engraçado quando os nerds saíram às ruas vestidos de jedi para fazer justiça com as próprias mãos e levaram um cacete). Abafaram o caso e tiraram os bichos de circulação. A coisa virou uma espécie de lenda urbana e, desde então, só os mais bem informados sabem que ainda se faz clones no Mercado Negro, tanto para substituição de órgãos quanto de pessoas. E este cara aqui do meu lado que diz ser meu velho amigo, ao que tudo indica, é um deles.
Meu parceiro descolou um novo veículo para nós no desmanche do finado Valim: um Passat turbinado adaptado para vôo. Enchemos o porta-malas de armas e colocamos a cabeça do ex-dono do carro no banco de trás. Eu preferia resolver tudo no chão, mas o pé nervoso do motorista/piloto nos colocou no ar e em disparada para a parte sul da cidade, e agora, Otto Nema (ou seja lá que diabos for essa coisa) me observa de canto de olho. Por um breve momento, torço para que eu esteja enganado, mas desde que eu vi o cara amassando a lataria do MV com os próprios punhos, fiquei com um pé atrás. Não reconhecer o próprio lança-chamas também não foi bonito, principalmente quando há uma inscrição nele que diz “Da sua prima, com amor”, acusando que o velho Lúcio ainda investia nas filhas dos seus tios.
Um lança-chamas de presente. Onde esse mundo vai parar?
- Uma pena o carro não estar lá. – jogo uma isca.
Silêncio.
- Eu pensei que o Vovô tivesse um significado especial. – pressiono pra ver no que dá, mas sem dar bandeira das minhas suspeitas.
Silêncio. O pé acelera mais.
- Pelo menos deve significar alguma coisa pro verdadeiro Lúcio. - quem eu estou querendo enganar? É da minha natureza jogar merda no ventilador.
Tento ser veloz, mas esse clone com certeza é uma versão aprimorada. Algo entre homem e máquina, com uma pitada de mau gosto. Com rapidez autômata, ele aponta a arma para a minha cabeça e só tenho tempo de me jogar para a frente antes que o tiro queime os pêlos da minha nuca e destrua o vidro da porta. Começamos a lutar. Ele esqueceu o volante e agora emprega sua grande força somente para apontar o cano para as minhas fuças. Tento socá-lo com a minha mão direita e ele só fica mais irritado. Começa a dar tiros diante do meu rosto, arrebentando todo o carro em volta da minha cabeça. Aponto seu braço para a parte de trás do carro e ele acerta um dos tanques de combustível. Uma grande bola de fogo surge debaixo dos nossos pés. Que maravilha: lá vamos nós cair de novo.
O Passat desenha um grande risco vertical de fumaça no céu. Em todo o trajeto, o psicopata tenta quebrar meu pescoço com uma mão e me impedir de pressionar o botão de ejetar com a outra. Ele está gritando alguma coisa, mas não escuto nada. Devo ter perdido os tímpanos enquanto ele descarregava a arma tão perto das minhas orelhas. Olho o pára-brisa e vejo o telhado de uma casa crescendo rapidamente. Deixo o pescoço desprotegido por tempo suficiente para o clone grudar as duas mãos nele. Eu queria dar um sorriso sacana antes, mas resolvo não dar as costas para o azar e aperto logo o botão de ejetar que ele finalmente deixou livre. Com um tranco absurdo seguido de um estalo tão alto que eu consegui escutar, meu banco foi catapultado para fora da carcaça framejante. Junto comigo – e ainda grudado no meu pescoço – está Otto Nema, que fora partido ao meio na ejeção. A outra parte de seu corpo ainda está no carro, e as duas estão ligadas pelo intestino do clone, que se desprende do seu tronco como um novelo de lã enquanto o veículo cai vertiginosamente. O pavor fica estampado no rosto do Otto quando seus dedos se desprendem de mim e o resto do seu corpo é puxado para baixo por mais de cinco metros de intestino. Coisa feia de se ver.
O carro explode na tal casa com as duas partes do clone. Enquanto caio lentamente, me dou conta de que é o quarto acidente aéreo no qual me envolvo só neste mês. Se houvesse um programa de milhagem ou um prêmio para azarões, não teria pra ninguém. Fico imaginando o que será que o clone estava gritando enquanto caíamos: tentava me convencer de que era o verdadeiro Lúcio? Me amaldiçoava pelos cotovelos? Me perguntava algo sobre o paradeiro do meu verdadeiro ex-amigo?
A queda em direção a um terreno baldio é lenta. A brisa consegue ser agradável. Não escuto nada e acho até que vejo algum raio de sol. É possível que esteja vivendo o maior momento de paz que tive em anos e eu nunca me senti tão sozinho. A bomba permanece no meu pescoço, mas não tenho mais um experimento científico psicótico do meu lado.
Acho que agora posso dormir um pouco...
Ok, eu explico: desde a Dolly, os cabeções dos laboratórios dos grandes países estão tentando uma forma efetiva de clonagem. Faz um par de décadas que anunciaram os primeiros humanos clonados e a reconstrução mundial parecia estar indo em uma direção aceitável com a descoberta. Uma fartura de órgãos para transplante e a repovoação do planeta apontavam para o sucesso, mas como quase tudo que o Homem faz se estraga a longo prazo, a merda agarrou quando os primeiros clones demonstraram transtornos obsessivo/homicidas que os faziam tentar tomar o lugar de seus modelos originais. Quando um clone sem fígado e rins do presidente americano tentou tirar a Dinamarca (não me pergunte por que logo a Dinamarca) do mapa com um ataque nuclear, decidiram que era hora de eliminar a ameaça e iniciaram uma “Guerra dos Clones” por debaixo dos panos (tudo bem, foi engraçado quando os nerds saíram às ruas vestidos de jedi para fazer justiça com as próprias mãos e levaram um cacete). Abafaram o caso e tiraram os bichos de circulação. A coisa virou uma espécie de lenda urbana e, desde então, só os mais bem informados sabem que ainda se faz clones no Mercado Negro, tanto para substituição de órgãos quanto de pessoas. E este cara aqui do meu lado que diz ser meu velho amigo, ao que tudo indica, é um deles.
Meu parceiro descolou um novo veículo para nós no desmanche do finado Valim: um Passat turbinado adaptado para vôo. Enchemos o porta-malas de armas e colocamos a cabeça do ex-dono do carro no banco de trás. Eu preferia resolver tudo no chão, mas o pé nervoso do motorista/piloto nos colocou no ar e em disparada para a parte sul da cidade, e agora, Otto Nema (ou seja lá que diabos for essa coisa) me observa de canto de olho. Por um breve momento, torço para que eu esteja enganado, mas desde que eu vi o cara amassando a lataria do MV com os próprios punhos, fiquei com um pé atrás. Não reconhecer o próprio lança-chamas também não foi bonito, principalmente quando há uma inscrição nele que diz “Da sua prima, com amor”, acusando que o velho Lúcio ainda investia nas filhas dos seus tios.
Um lança-chamas de presente. Onde esse mundo vai parar?
- Uma pena o carro não estar lá. – jogo uma isca.
Silêncio.
- Eu pensei que o Vovô tivesse um significado especial. – pressiono pra ver no que dá, mas sem dar bandeira das minhas suspeitas.
Silêncio. O pé acelera mais.
- Pelo menos deve significar alguma coisa pro verdadeiro Lúcio. - quem eu estou querendo enganar? É da minha natureza jogar merda no ventilador.
Tento ser veloz, mas esse clone com certeza é uma versão aprimorada. Algo entre homem e máquina, com uma pitada de mau gosto. Com rapidez autômata, ele aponta a arma para a minha cabeça e só tenho tempo de me jogar para a frente antes que o tiro queime os pêlos da minha nuca e destrua o vidro da porta. Começamos a lutar. Ele esqueceu o volante e agora emprega sua grande força somente para apontar o cano para as minhas fuças. Tento socá-lo com a minha mão direita e ele só fica mais irritado. Começa a dar tiros diante do meu rosto, arrebentando todo o carro em volta da minha cabeça. Aponto seu braço para a parte de trás do carro e ele acerta um dos tanques de combustível. Uma grande bola de fogo surge debaixo dos nossos pés. Que maravilha: lá vamos nós cair de novo.
O Passat desenha um grande risco vertical de fumaça no céu. Em todo o trajeto, o psicopata tenta quebrar meu pescoço com uma mão e me impedir de pressionar o botão de ejetar com a outra. Ele está gritando alguma coisa, mas não escuto nada. Devo ter perdido os tímpanos enquanto ele descarregava a arma tão perto das minhas orelhas. Olho o pára-brisa e vejo o telhado de uma casa crescendo rapidamente. Deixo o pescoço desprotegido por tempo suficiente para o clone grudar as duas mãos nele. Eu queria dar um sorriso sacana antes, mas resolvo não dar as costas para o azar e aperto logo o botão de ejetar que ele finalmente deixou livre. Com um tranco absurdo seguido de um estalo tão alto que eu consegui escutar, meu banco foi catapultado para fora da carcaça framejante. Junto comigo – e ainda grudado no meu pescoço – está Otto Nema, que fora partido ao meio na ejeção. A outra parte de seu corpo ainda está no carro, e as duas estão ligadas pelo intestino do clone, que se desprende do seu tronco como um novelo de lã enquanto o veículo cai vertiginosamente. O pavor fica estampado no rosto do Otto quando seus dedos se desprendem de mim e o resto do seu corpo é puxado para baixo por mais de cinco metros de intestino. Coisa feia de se ver.
O carro explode na tal casa com as duas partes do clone. Enquanto caio lentamente, me dou conta de que é o quarto acidente aéreo no qual me envolvo só neste mês. Se houvesse um programa de milhagem ou um prêmio para azarões, não teria pra ninguém. Fico imaginando o que será que o clone estava gritando enquanto caíamos: tentava me convencer de que era o verdadeiro Lúcio? Me amaldiçoava pelos cotovelos? Me perguntava algo sobre o paradeiro do meu verdadeiro ex-amigo?
A queda em direção a um terreno baldio é lenta. A brisa consegue ser agradável. Não escuto nada e acho até que vejo algum raio de sol. É possível que esteja vivendo o maior momento de paz que tive em anos e eu nunca me senti tão sozinho. A bomba permanece no meu pescoço, mas não tenho mais um experimento científico psicótico do meu lado.
Acho que agora posso dormir um pouco...
3 comentários:
Vaya historia sem fim!!!
Sim, poetisa e otras cositas mas...depois te conto.
Como vai o tempo por ai? Aqui em Genebra frio e chuva, mas agora que ja me acostumei com o inverno europeu ja nao sofro tanto.
beijos
Clones propensos a transtornos obsessivo/homicida. Que lugar mais simpático me parece esse futuro!:P
B.M.
Kele:
Genebra? Humpf, pessoas chiques (aqui faz o maior calor. Deu 38º ontem e hoje).
Grazi:
O futuro é só festa e alegria.=P
B.M.
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