Quem acompanha a série Game of Thrones, da HBO, está perplexo ou mesmo relutante em acreditar nos acontecimentos apresentados em Baelor, último episódio do seriado, exibido no domingo passado nos Estados Unidos. Não apenas os “leigos” como a grande maioria de nós, mas também críticos especializados em TV e entretenimentos do gênero são unânimes em enumerar este fatídico episódio como memorável, aterrador, sublime e diferente de tudo que a televisão havia trazido até então.
Mas o que fez de Baelor um episódio tão marcante e especial a ponto de fazer legiões de fãs ao redor do mundo comentarem, lamentarem e até gravarem suas reações ao assisti-lo e colocarem seus vídeos na internet? Não foi o excelente roteiro de David Benioff e D. B. Weiss (criadores da série), que transmitiu um clima de guerra sem mostrar uma única cena de batalha. Também não foi a evolução nítida dos personagens, muitos deles em seus momentos mais cruciais (Robb em sua primeira batalha, Daenerys e seu amado a beira da morte, Tyrion contando segredos obscuros de sua vida). Tampouco foram as revelações surpreendentes de Meistre Aemon e o temível dilema de Jon Snow, que terá de escolher entre o amor à sua família e o dever junto à Patrulha da Noite. Baelor, nono episódio da primeira temporada de Game of Thrones, quebrou o paradigma por matar Eddard “Ned” Stark, Lorde de Winterfell, Senhor do Norte, protagonista do seriado.
Talvez a palavra “matar” não seja apropriada para o que vimos em Baelor, pois Ned Stark não foi apenas “morto”. O que testemunhamos ao longo de toda a série, culminando neste último episódio, foi a completa estruturação e destruição de um personagem, física e psicologicamente. Vimos Ned “nascer” em Winter Is Coming como o sisudo patriarca dos Stark, regente do lugar mais gelado dos Sete Reinos e, graças a isso, executor das penalidades daquela região. Um sujeito que, desde o primeiro momento, acreditava que as leis, a verdade e a honra deveriam prevalecer a tudo e a todos, doesse a quem doesse (como esquecer do desertor que Ned teve de decapitar, a contragosto, na primeira cena na qual apareceu?). Conseguimos acompanhar as andanças de Ned em um mundo traiçoeiro, cruel e insano, onde tentou transmitir valores dos mais nobres, desafiando até mesmo o Rei, no intuito de preservar a sua ética inquestionável.
Como personagem mais correto de Game of Thrones, Ned também angariou uma série de inimigos, dentro e fora das telas. Em Westeros, o achavam justo, de caráter inabalável, por vezes até ingênuo ao pensar que a justiça era o melhor caminho para qualquer coisa. Aqui, no mundo real, há quem o achasse chato, enfadonho e até “certinho demais”, alguém que não se mexia diante de tantos acontecimentos canhestros (basta lembrar de sua passividade ante as acusações de Catelyn sobre o atentado a Bran). O que qualquer pessoa que se preste a analisar narrativas com seriedade não pode dizer é que Eddard “Ned” Stark, com toda sua força, carisma e poder de decisão, não era um personagem fascinante.
Sim, vimos Ned nascer de uma forma autoral e vívida, muito mais intensa que sua contraparte nos livros de George R. R. Martin (que, segundo os que leram a obra, se encarrega de distribuir o foco da história para todos os personagens hermanamente). Se nas páginas de As Crônicas de Gelo e Fogo existe esta ressalva, no seriado não há discussão acerca do protagonismo de Ned, uma vez que todas as decisões tomadas em Westeros são baseadas nos movimentos do Lorde de Winterfell. Sempre foi assim porque os responsáveis pela série da HBO queriam que fosse assim. Eis a diferença.
Assim como presenciamos todas as escolhas honradas de Ned ao longo da série (escolhas que consolidaram seu caráter, suas convicções e tudo que se espera dele), chegamos em seu derradeiro dilema, apresentado pelo Rei Joffrey em The Pointy End: Eddard Stark, prisioneiro por traição, deveria se ajoelhar perante o jovem monarca, pedir perdão por seus “crimes” e reconhecer o direito de Joffrey ao Trono de Ferro. O problema é que Ned seguia uma recomendação do Rei anterior (que a fizera em seu leito de morte) e Joffrey NÃO é realmente herdeiro do trono; o patriarca dos Stark reconhecer algo assim seria o mesmo que renunciar aos seus ideais de honra e defesa da verdade, seria contrariar sua natureza. Em suma, esperava-se que Ned Stark não sucumbisse às ameaças.
Mas eis que surge o elemento familiar na trama, e a perspectiva se altera: Sansa, filha de Ned, se encontra em poder do novo Rei e fica claro que, se a confissão não ocorrer, a moça sofrerá as conseqüências. Também fica claro que se o Senhor do Norte confessar, terá a misericórdia real e será apenas exilado. Esta condição e a soma dos elementos comporta a possibilidade de Ned vender sua alma, passar por cima de seus princípios em prol da segurança da filha e de sua própria. O personagem perderia sua essência, mas viveria. Uma troca justa, se o Rei Joffrey fosse justo.
Em uma cena magnanimamente orquestrada por Alan Taylor (um dos mais proeminentes diretores de TV da atualidade), Ned Stark “morre” pela primeira vez ao sacrificar sua dignidade, se declarando culpado das acusações de traição e reconhecendo Joffrey como o Rei legítimo. Ele se destrói por dentro para garantir a segurança de Sansa, salvar a própria pele e para recompensar nós, telespectadores, com seu suposto prosseguimento na série (e, quem sabe, uma eventual vingança contra os Lannister pela humilhação). Contudo, não é isso que acontece: inebriado pelo poder e pela necessidade de mostrar serviço, Joffrey volta atrás no “trato” e manda executar Ned Stark, para a surpresa do condenado, de sua filha Sansa (e de Arya, que observava de longe), da própria Rainha Cersei (que sabia do golpe fatal que seria esta execução para a paz no reino) e de nós, telespectadores, que tivemos de assistir a horripilante e inexorável seqüência onde, através de uma belíssima montagem de imagens e atuações impecáveis de Sean Bean (Ned) e das atrizes Sophie Turner (Sansa) e Maisie Williams (Arya), o personagem principal de um seriado é executado. Para quem não acompanha a série ter uma vaga noção, é como assistir 24 e House M. D. e Jack Bauer ou o doutor manco serem assassinados em seus respectivos programas.
Se este procedimento de sacrificar protagonistas parece ter precedentes na ficção (Jack Shepard morre no final de Lost, William Wallace é executado em Coração Valente, Romeu e Julieta se envenenam, entre outros muitos exemplos), no seriado Game of Thornes este panorama se complica não apenas pela morte moral de Ned (lembre-se que, no filme de Mel Gibson, o escocês não abre mão de suas convicções), mas pelo fato de que a série está praticamente em seu início e terá de sobreviver a esta tragédia, enquanto as outras obras citadas findaram sua narrativa junto com seus heróis. Esta decisão, que para muitos pode parecer partir do material original da história, é obra única e exclusivamente da HBO, não apenas por decidir adaptar a obra de Martin (um autor que foge do convencional), mas por manipular a história a ponto de nos entregar um protagonista cativante e nos tirá-lo abruptamente, despertando um misto de sentimentos poderosos no espectador, além de uma experiência única.
Mas engana-se quem pensa que a morte de Ned Stark é ruim. A partir dela teremos novas ramificações na trama, e sua partida possibilitará que os outros personagens de Game of Thrones cresçam de uma forma muito mais orgânica e consistente, desta vez, com um motivador como nunca se viu e não se verá tão cedo em outros programas. Eu gostava de Ned e fiquei estarrecido ao assistir Baelor, mas agradeço à HBO por me surpreender e me proporcionar momentos que jamais esquecerei.
Ned morreu, mas a vida continua.