...a vizinhança na Estação 18 não é muito diferente da do resto da cidade. Moradores de rua, bêbados, traficantes de créditos, robôs azulzinhos. Não é raro algum espírito de porco estacionar seu carro voador em cima de alguma das poucas árvores que restaram no meu bairro. Jogo a embalagem do Hall’s à esmo e logo uma lixeira se mexe. Provavelmente é o maior diferencial da 18 para os outros bairros. Aqui, a limpeza pública é realmente efetiva. A pequena latinha desce de seu pedestal e aciona uma mini-vassoura e uma pá, jogando o papel em seu interior. Antes dela se fechar, dou uma olhada no que tem dentro. Se as pessoas tivessem noção, se surpreenderiam com o que se encontra no lixo nos dias de hoje. Duas retinas. Um molho de chaves. Três fotos de um casal apaixonado dos anos 90. Um 38 velho. O truque do Hall’s sempre funciona.
- Ainda catando lixo pra sobreviver?
Uma voz familiar, mas grave. Viro rapidamente, já apontando o 38 para o sujeito gigante protegido pelas sombras. Por onde anda um globo de luz quando se precisa dele?
- Está descarregado.
Pressiono o gatilho. O berro cospe fogo a centímetros do estranho, estourando uma haste de cerca elétrica. Ele se encolhe apavorado.
- Putamerda, Édnei. Desde quando tu atira desse jeito?
- Desde o tempo em que eu te ganhava no Virtual Cop.
Otto Nema sai das sombras. Fora por seu rosto liso e a voz, ele está irreconhecível. Uma cabeleira loura e vasta substitui seu outrora cabelo micoco. Embora envergue um sobretudo de couro, nota-se que está em ótima forma. Não o via assim desde Floripa. Aliás, não o via há uns 15 anos. Como um homem bem atualizado, recebo informes sobre suas atividades ilegais envolvendo fraudes bancárias e transporte de imigrantes. Este sim tem uma ficha memorável.
- Não devia andar com esse cabelo na rua, Otto.
- Está tão ruim assim?
- Tu parece o Thor.
- E isso não é bom?
As fechaduras do meu prédio são à moda antiga. Coisa de paranóico. Ninguém vai querer decepar seu polegar se ver chaves no seu bolso. Além disso, pode-se engoli-las num momento de aperto. Eu já fiz isso duas vezes. Giro a chave. Otto, logo atrás, olha para todos os lados. Deve estar esperando alguém pular das escadas. Os bolsos dele também devem estar cheios de chaves.
- Não repare a bagunça.
Entramos no meu apê. Ah, saudade. Fazia duas semanas que não vinha pra cá. Meu velho micro no cantinho de sempre. Um Godzilla de pelúcia mais velho que andar pra frente ao seu lado. RVs espalhados como se fazia com os antigos livros e DVDs. Embalagens de pizzas por tudo. Otto examina algumas fotos antigas dos meus filhos estacionadas num criado-mudo. Deixa cair um dos porta-retratos, que se espatifa no chão em mil pedacinhos.
- Além de destruir minha casa, o que tu queres?
- Foi mal, cara. Nossa, tu tá um caco.
- Tá por me xingar então.
Otto Nema encolhe os ombros. Não está dando nenhuma dentro, mas o perdôo por dois motivos:
1º – Ele já foi um grande amigo;
2º – Ele é um dos homens mais letais do país.
O traficante senta no meu diminuto sofá e tenta cruzar as pernas, sem sucesso. Olha para o vazio, com a mão no RCP 90 grudado em sua cintura. Definitivamente, sabe como deixar um sujeito nervoso. Quando já estou para borrar as calças, ele resolve falar:
- Preciso da tua ajuda.
Pego a cadeira giratória e me ponho à escutá-lo. Ainda estou com o 38 na mão. Só tinha aquela bala que usei antes, mas acho que ele não sabe. Blefe, pra variar.
- Continua.
- Tu lembra do Vovô?
Nossa, ele desencavou essa. O Vovô era um carro que usávamos, quando moleques, para fazer nossas indiadas. Na maior parte das vezes, terminávamos a noite empurrando-o. O veículo é tão antigo que nem lembro da cor dele. Otto começa a contar a fantástica história de seu carro de estimação e de como ele parou nas mãos de um mercador de jóias que eu conheço.
- Ah, não. O Holandês Voador não.
- Pois é. O Vovô tá com ele e preciso pegá-lo de volta.
- Bah, Lúcio. Me pegou de jeito agora.
Otto não gosta muito de escutar seu nome de batismo, mas fica quieto. Eu e minha mania de chamar as pessoas por seu nome real...
- Tu é o único que consegue negociar com aquele maluco e continuar vivo. Preciso de ti.
- Condena aquela joça. Tá vendo essa cicatriz? Precisei achar uma banheira e gelo às duas da manhã pra sobreviver.
Levanto a blusa e mostro a avenida que o Holandês Voador me abriu no flanco direito. Otto parece não se importar. O Vovô realmente vale algo pra ele e nada do que eu argumentar vai dissuadí-lo desta idéia brilhante de ter o veículo de volta. Terei de usar isso ao meu favor.
- Eu te ajudo. Mas vamos ter de trocar favores. Está vendo esta marca aqui no meu pescoço?
Conto a triste história da minha vida e ele quase tem um colapso quando cito o nome do Filipe Ferreira. É claro que alguém como Otto Nema teria uns trinta contatos de contrabandistas de cerveja. A bebida pelo Vovô. Uma troca justa.
Abro a mesinha no meio da sala e estendo o mapa de Porto Alegre, datado de 2023. Ganhei numa rifa, junto com a geladeira. Tu nunca sabe quando vai precisar de uma geladeira e de um mapa, certo? A loja do Holandês fica na Azenha. Próximo daqui. Mas com certeza o Vovô não está lá. Deve estar num depósito secreto que o maníaco chama de “Casulo” e que ninguém sabe onde fica. Na verdade, alguns duvidam da existência do lugar, como se fosse uma Atlântida. Assim como eu, Otto tem um deadline para pegar o carro de volta, antes do Holandês incinerá-lo e usar as partes derretidas para fabricar jóias sintéticas ou implantes em seu próprio corpo. Chegamos a conclusão de que precisamos invadir a loja do Holandês Voador e pegar a informação sobre o Casulo na marra. Não gosto muito da idéia, mas Otto garante que consegue me colocar na frente do Holandês sem grandes riscos de vida. Eu só preciso convencer o maluco a nos dar o Vovô, antes que ele resolva explodir o lugar com todo mundo dentro. Dizem que sua loja está na quarta reforma e que seus órgãos vitais já foram trocados 12 vezes.
Olha as roubadas em que me meto...
Deixo Otto entretido com o vídeo-game enquanto tomo um banho. Ele ficou meio desolado por ser um Play 15, mas não deu dois segundos para colocar um GTA Saturno no aparelho e sair espancando o controle. Certos hábitos nunca se perdem. Quando saio do banheiro, Otto já havia colocado mil manhas no jogo e descoberto outras trocentas fases secretas. Vou para o quarto e verifico os apetrechos necessários:
Palm e Casher à prova d’água;
Detector de Radiação e Explosivos;
Dois bastões de comida em pílulas;
Colete à prova de projéteis;
Um passaporte molhado (tenho que colocá-lo atrás da geladeira);
Duas retinas em bom estado;
Três fotos de um casal apaixonado dos anos 90;
Dois tabletes de Hall’s preto;
Revolver 38 sem balas;
Soco inglês;
Roupas limpas, mas o casaco de sempre.
Sou um novo homem quando saio do quarto. Otto me observa desconfiado e diz que algo está faltando. Remexe em sua mochila e me joga um desintegrador Cougar 15 carregado.
- Pode jogar fora esse revolver sem balas.
- Pensei que tu ia me colocar na frente do Holandês em segurança.
- Ei, não se preocupe...
Otto Nema me dá três tapinhas nas costas e completa.
- Esta arma não é nuclear.
- Ainda catando lixo pra sobreviver?
Uma voz familiar, mas grave. Viro rapidamente, já apontando o 38 para o sujeito gigante protegido pelas sombras. Por onde anda um globo de luz quando se precisa dele?
- Está descarregado.
Pressiono o gatilho. O berro cospe fogo a centímetros do estranho, estourando uma haste de cerca elétrica. Ele se encolhe apavorado.
- Putamerda, Édnei. Desde quando tu atira desse jeito?
- Desde o tempo em que eu te ganhava no Virtual Cop.
Otto Nema sai das sombras. Fora por seu rosto liso e a voz, ele está irreconhecível. Uma cabeleira loura e vasta substitui seu outrora cabelo micoco. Embora envergue um sobretudo de couro, nota-se que está em ótima forma. Não o via assim desde Floripa. Aliás, não o via há uns 15 anos. Como um homem bem atualizado, recebo informes sobre suas atividades ilegais envolvendo fraudes bancárias e transporte de imigrantes. Este sim tem uma ficha memorável.
- Não devia andar com esse cabelo na rua, Otto.
- Está tão ruim assim?
- Tu parece o Thor.
- E isso não é bom?
As fechaduras do meu prédio são à moda antiga. Coisa de paranóico. Ninguém vai querer decepar seu polegar se ver chaves no seu bolso. Além disso, pode-se engoli-las num momento de aperto. Eu já fiz isso duas vezes. Giro a chave. Otto, logo atrás, olha para todos os lados. Deve estar esperando alguém pular das escadas. Os bolsos dele também devem estar cheios de chaves.
- Não repare a bagunça.
Entramos no meu apê. Ah, saudade. Fazia duas semanas que não vinha pra cá. Meu velho micro no cantinho de sempre. Um Godzilla de pelúcia mais velho que andar pra frente ao seu lado. RVs espalhados como se fazia com os antigos livros e DVDs. Embalagens de pizzas por tudo. Otto examina algumas fotos antigas dos meus filhos estacionadas num criado-mudo. Deixa cair um dos porta-retratos, que se espatifa no chão em mil pedacinhos.
- Além de destruir minha casa, o que tu queres?
- Foi mal, cara. Nossa, tu tá um caco.
- Tá por me xingar então.
Otto Nema encolhe os ombros. Não está dando nenhuma dentro, mas o perdôo por dois motivos:
1º – Ele já foi um grande amigo;
2º – Ele é um dos homens mais letais do país.
O traficante senta no meu diminuto sofá e tenta cruzar as pernas, sem sucesso. Olha para o vazio, com a mão no RCP 90 grudado em sua cintura. Definitivamente, sabe como deixar um sujeito nervoso. Quando já estou para borrar as calças, ele resolve falar:
- Preciso da tua ajuda.
Pego a cadeira giratória e me ponho à escutá-lo. Ainda estou com o 38 na mão. Só tinha aquela bala que usei antes, mas acho que ele não sabe. Blefe, pra variar.
- Continua.
- Tu lembra do Vovô?
Nossa, ele desencavou essa. O Vovô era um carro que usávamos, quando moleques, para fazer nossas indiadas. Na maior parte das vezes, terminávamos a noite empurrando-o. O veículo é tão antigo que nem lembro da cor dele. Otto começa a contar a fantástica história de seu carro de estimação e de como ele parou nas mãos de um mercador de jóias que eu conheço.
- Ah, não. O Holandês Voador não.
- Pois é. O Vovô tá com ele e preciso pegá-lo de volta.
- Bah, Lúcio. Me pegou de jeito agora.
Otto não gosta muito de escutar seu nome de batismo, mas fica quieto. Eu e minha mania de chamar as pessoas por seu nome real...
- Tu é o único que consegue negociar com aquele maluco e continuar vivo. Preciso de ti.
- Condena aquela joça. Tá vendo essa cicatriz? Precisei achar uma banheira e gelo às duas da manhã pra sobreviver.
Levanto a blusa e mostro a avenida que o Holandês Voador me abriu no flanco direito. Otto parece não se importar. O Vovô realmente vale algo pra ele e nada do que eu argumentar vai dissuadí-lo desta idéia brilhante de ter o veículo de volta. Terei de usar isso ao meu favor.
- Eu te ajudo. Mas vamos ter de trocar favores. Está vendo esta marca aqui no meu pescoço?
Conto a triste história da minha vida e ele quase tem um colapso quando cito o nome do Filipe Ferreira. É claro que alguém como Otto Nema teria uns trinta contatos de contrabandistas de cerveja. A bebida pelo Vovô. Uma troca justa.
Abro a mesinha no meio da sala e estendo o mapa de Porto Alegre, datado de 2023. Ganhei numa rifa, junto com a geladeira. Tu nunca sabe quando vai precisar de uma geladeira e de um mapa, certo? A loja do Holandês fica na Azenha. Próximo daqui. Mas com certeza o Vovô não está lá. Deve estar num depósito secreto que o maníaco chama de “Casulo” e que ninguém sabe onde fica. Na verdade, alguns duvidam da existência do lugar, como se fosse uma Atlântida. Assim como eu, Otto tem um deadline para pegar o carro de volta, antes do Holandês incinerá-lo e usar as partes derretidas para fabricar jóias sintéticas ou implantes em seu próprio corpo. Chegamos a conclusão de que precisamos invadir a loja do Holandês Voador e pegar a informação sobre o Casulo na marra. Não gosto muito da idéia, mas Otto garante que consegue me colocar na frente do Holandês sem grandes riscos de vida. Eu só preciso convencer o maluco a nos dar o Vovô, antes que ele resolva explodir o lugar com todo mundo dentro. Dizem que sua loja está na quarta reforma e que seus órgãos vitais já foram trocados 12 vezes.
Olha as roubadas em que me meto...
Deixo Otto entretido com o vídeo-game enquanto tomo um banho. Ele ficou meio desolado por ser um Play 15, mas não deu dois segundos para colocar um GTA Saturno no aparelho e sair espancando o controle. Certos hábitos nunca se perdem. Quando saio do banheiro, Otto já havia colocado mil manhas no jogo e descoberto outras trocentas fases secretas. Vou para o quarto e verifico os apetrechos necessários:
Palm e Casher à prova d’água;
Detector de Radiação e Explosivos;
Dois bastões de comida em pílulas;
Colete à prova de projéteis;
Um passaporte molhado (tenho que colocá-lo atrás da geladeira);
Duas retinas em bom estado;
Três fotos de um casal apaixonado dos anos 90;
Dois tabletes de Hall’s preto;
Revolver 38 sem balas;
Soco inglês;
Roupas limpas, mas o casaco de sempre.
Sou um novo homem quando saio do quarto. Otto me observa desconfiado e diz que algo está faltando. Remexe em sua mochila e me joga um desintegrador Cougar 15 carregado.
- Pode jogar fora esse revolver sem balas.
- Pensei que tu ia me colocar na frente do Holandês em segurança.
- Ei, não se preocupe...
Otto Nema me dá três tapinhas nas costas e completa.
- Esta arma não é nuclear.