...e sento em um confortável sofá de couro legítimo. Já havia estado no Buraco antes, mas é a primeira vez que entro na Disco Inferno. Um robô esquelético me pergunta se quero mais whisky. Digo que sim. Preciso de bebida pra enfrentar esta visão. Há hologramas espalhados por todo lado. Como se estivesse dentro de um caleidoscópio. Paredes se abrem e se fecham conforme as batidas de uma música que beira a Rammstein, mostrando e escondendo mil atrocidades. No teto, de cabeça para baixo, uma equipe de BDSM faz um trabalho de artesão em três empresários barrigudos. Tenho que inclinar a cabeça em 90 graus para ver isso e desviar das gotas de sangue e fluídos para que não manchem o meu casaco. No chão, um caldeirão arde em um fogareiro gigante. Consigo ver algumas mãos tentando sair do líquido fervente e sendo espetadas por tridentes habilmente manuseados por diabretes com vestidos de festa. Não sei se os chifres são mutações ou pré-requisitos para as garotas trabalharem aqui, mas admito que não precisava das línguas bifurcadas. Duas garotas se refestelam com um cavalo de verdade vestido de palhaço no canto oposto. O ar-condicionado faz um efeito primoroso no lugar, que não é nem frio, nem quente. Exaustores bem colocados afastam qualquer odor, dando à Disco Inferno um cheiro de nada.
Uma porta se abre num nível mais elevado. Através dela, vejo uma silhueta rechonchuda sentada em uma espécie de trono. Uma plataforma é acionada, trazendo o tal trono em minha direção. Tento levantar, mas descubro que estou paralisado do pescoço pra baixo. Algo na bebida, provavelmente. Passado pra trás por um pedaço de lata. Fim de carreira. O suposto rei sai das sombras e logo reconheço o velho Drako Rebello. Ou quase. Metade do sujeito é feito de cera e pinos de borracha. Na verdade, só tenho certeza que é ele por causa da sua inseparável barba mal-feita.
- Ora, ora. Estavas me devendo uma visita, Pedroso.
- Me paralisar foi sacanagem, Drako. É assim que tu recebe um velho amigo?
- Tenho que garantir a integridade da Disco. Me disseram que agora tu tens fama de destruidor de lugares.
- Está me confundindo com o Babys.
- O Babys. Me arrancou um olho com um refletor no nosso último trabalho.
- Eu lembro. Saudade do Babys.
- O que achou da casa?
- Tenho uma reclamação: devia estar tocando “Disco”, e não “Tanz Metall”.
Um escravo surge rastejando com uma bandeja equilibrada na cabeça e um copo de Bloodbelt. Drako pega a bebida, tira um berro da cintura e aponta o cano para onde repousava o copo. Ele atira. A cabeça do serviçal explode debaixo da bandeja. Se ele queria me provar que sou um pedaço de merda aqui dentro, ele conseguiu. Já consigo movimentar os dedos das mãos enquanto Drako Rebello sorve sua birita cor de barata e grita “Corta!”
- Acho que tenho um bom take, e um bom argumento. Quer me ajudar no roteiro?
- Não faço mais isso, Drako. Preciso encontrar um cara.
O cineasta bate duas palmas e umas dez pessoas surgem para remover o defunto e limpar o lugar. Parecem formigas acabando com um pote de açucar. Em um piscar de olhos, o lugar está asséptico. Preciso levá-los na minha casa qualquer hora dessas.
- Não há robô que substitua o talento.
- O nome é Basílico. Sujeito baixinho, careca...
- Excelente ator. Vou usá-lo no meu próximo projeto.
Levanto do sofá e ajeito meu casaco. Drako arregala os olhos postiços e os pinos de sua mandíbula saltam, fazendo seu carrinho cair no seu colo. É a cara de espanto mais rocambolesca que já vi. Seja lá o que tinha na bebida, não foi forte o suficiente para me manter comportado. Coloco seu queixo de volta no lugar para mostrar que venho em paz.
- Parece um boneco de ventríloco, Drako. Nunca ouviu falar em clonagem?
- Como fez isso? Tinha Tentrano suficiente pra paralisar um cavalo naquele whisky...
- Ainda bem que ando nas duas patas. Então, quanto tenho que pagar pra tu me entregar o Basi?
- Fizemos um exame de retina em ti assim que sentou no sofá e sabemos que tu não tens nem um tostão.
- Tudo bem. Não tenho dinheiro. O que preciso fazer pra tu me entregar o Basi?
Drako me pede um momento e coloca o indicador no ouvido. Faz alguns sinais de positivo com a cabeça, como se estivesse recebendo instruções de um ponto eletrônico. E está. Responde a tudo com um “Certo, Chefe!” e se volta para mim.
- Acho que alguém lá em baixo gosta de ti. O Chefe sabe que tu não tens grana, mas te libera o ator.
- Ele não é ator. Só está bêbado. Se tu tivesse nariz, teria percebido.
- Bem, ator ou não, não vai sair de graça. Vais ficar devendo um fardo de cerveja pro Ferreira.
- Ferreira...Ferreira. Ferreira? Filipe Ferreira?
A música pára. Os hologramas param. O mundo pára. Drako faz sinal para que eu fique em silêncio. Logo me dou conta de que disse algo que não devia. Filipe Ferreira. Um homem. Uma lenda. Já tinha feito história nos velhos tempos, mas todos achavam que tinha batido as botas na Gripe de 10. Acabo de saber que alguém que já foi meu melhor amigo não só está vivo como é o verdadeiro dono da Disco Inferno. Me sinto estúpido por só saber disso agora. Drako bate três palmas e tudo volta ao normal. Nunca vi alguém que goste tanto de aplaudir.
- Não fala o nome dele, animal.
- Foi mal. Sempre pensei que a Disco fosse tua.
- Vendi pro Ferreira faz 5 anos. Agora só gerencio.
- Onde ele está? Preciso falar com ele agora.
- Moscou. E não temos teletransportador aqui.
- É a segunda vez que alguém me fala de Moscou hoje.
- Ele volta de lá na semana que vem. Tens sete dias pra trazer o fardo.
- Tu falaste que sou eu?
Drako levanta do trono. Coloca uma pistola de chip no meu pescoço e injeta o mecanismo. Um timer no touch da pistola dá uma regressiva. Uma bomba. Que espetáculo.
- Ele sabe.
- Não quer me dar um tapa-olho também?
- Tens até as 3 da manhã do dia 18 pra trazer a bebida. Com ela na mão, o Ferreira desativa o chip.
Confiança é tudo nesta vida. Apertamos as mãos. Só agora noto que as pernas do Drako são de fibra e menores do que deviam. Deve ter apostado as originais e perdido. Quase dou risada quando subimos as escadas. Chegamos numa porta de metal arranhada e o gerente a abre num rangido fantasmagórico. Basi está nu, encolhido no aposento que não deve ter mais que um metro quadrado. Há cortes suturados e queimaduras em seu corpo. Tudo recente. Olho para Drako e este encolhe os ombros. Se ele faz isso com os atores, imagino o que não deve fazer com os roteiristas. Digo que preciso das roupas do Basi. Adivinha o que o gerente faz?
Bate palmas.
Saímos da Disco Inferno. Prometi ao Drako que traria minha namorada aqui quando arrumasse uma, logo depois de receber instruções para ficar dois quarteirões longe de qualquer ser vivo se acaso não conseguir chegar em tempo para desativar a bomba. Animador pacas. O Basi segue dormindo. Tive de drogá-lo e colocá-lo num daqueles carrinhos de supermercados antigos. Ele desaprovaria o que estou para fazer pra sair do Buraco antes das 24 horas findarem e do meu tempo de apelação expirar. Confiro minha lista de afazeres no Palm:
1 – Sair do Buraco;
2 – Procurar um Juíz de Rua e provar minha inocência;
3 – Surrar o Basi;
4 – Arrumar um fardo de cerveja e arriscar Pena de Morte novamente;
5 – Trazer o treco para o Ferreira e desativar a bomba.
6 – Beber a metade do fardo.
Céus, preciso de uma cerveja...e de um helicóptero.
Uma porta se abre num nível mais elevado. Através dela, vejo uma silhueta rechonchuda sentada em uma espécie de trono. Uma plataforma é acionada, trazendo o tal trono em minha direção. Tento levantar, mas descubro que estou paralisado do pescoço pra baixo. Algo na bebida, provavelmente. Passado pra trás por um pedaço de lata. Fim de carreira. O suposto rei sai das sombras e logo reconheço o velho Drako Rebello. Ou quase. Metade do sujeito é feito de cera e pinos de borracha. Na verdade, só tenho certeza que é ele por causa da sua inseparável barba mal-feita.
- Ora, ora. Estavas me devendo uma visita, Pedroso.
- Me paralisar foi sacanagem, Drako. É assim que tu recebe um velho amigo?
- Tenho que garantir a integridade da Disco. Me disseram que agora tu tens fama de destruidor de lugares.
- Está me confundindo com o Babys.
- O Babys. Me arrancou um olho com um refletor no nosso último trabalho.
- Eu lembro. Saudade do Babys.
- O que achou da casa?
- Tenho uma reclamação: devia estar tocando “Disco”, e não “Tanz Metall”.
Um escravo surge rastejando com uma bandeja equilibrada na cabeça e um copo de Bloodbelt. Drako pega a bebida, tira um berro da cintura e aponta o cano para onde repousava o copo. Ele atira. A cabeça do serviçal explode debaixo da bandeja. Se ele queria me provar que sou um pedaço de merda aqui dentro, ele conseguiu. Já consigo movimentar os dedos das mãos enquanto Drako Rebello sorve sua birita cor de barata e grita “Corta!”
- Acho que tenho um bom take, e um bom argumento. Quer me ajudar no roteiro?
- Não faço mais isso, Drako. Preciso encontrar um cara.
O cineasta bate duas palmas e umas dez pessoas surgem para remover o defunto e limpar o lugar. Parecem formigas acabando com um pote de açucar. Em um piscar de olhos, o lugar está asséptico. Preciso levá-los na minha casa qualquer hora dessas.
- Não há robô que substitua o talento.
- O nome é Basílico. Sujeito baixinho, careca...
- Excelente ator. Vou usá-lo no meu próximo projeto.
Levanto do sofá e ajeito meu casaco. Drako arregala os olhos postiços e os pinos de sua mandíbula saltam, fazendo seu carrinho cair no seu colo. É a cara de espanto mais rocambolesca que já vi. Seja lá o que tinha na bebida, não foi forte o suficiente para me manter comportado. Coloco seu queixo de volta no lugar para mostrar que venho em paz.
- Parece um boneco de ventríloco, Drako. Nunca ouviu falar em clonagem?
- Como fez isso? Tinha Tentrano suficiente pra paralisar um cavalo naquele whisky...
- Ainda bem que ando nas duas patas. Então, quanto tenho que pagar pra tu me entregar o Basi?
- Fizemos um exame de retina em ti assim que sentou no sofá e sabemos que tu não tens nem um tostão.
- Tudo bem. Não tenho dinheiro. O que preciso fazer pra tu me entregar o Basi?
Drako me pede um momento e coloca o indicador no ouvido. Faz alguns sinais de positivo com a cabeça, como se estivesse recebendo instruções de um ponto eletrônico. E está. Responde a tudo com um “Certo, Chefe!” e se volta para mim.
- Acho que alguém lá em baixo gosta de ti. O Chefe sabe que tu não tens grana, mas te libera o ator.
- Ele não é ator. Só está bêbado. Se tu tivesse nariz, teria percebido.
- Bem, ator ou não, não vai sair de graça. Vais ficar devendo um fardo de cerveja pro Ferreira.
- Ferreira...Ferreira. Ferreira? Filipe Ferreira?
A música pára. Os hologramas param. O mundo pára. Drako faz sinal para que eu fique em silêncio. Logo me dou conta de que disse algo que não devia. Filipe Ferreira. Um homem. Uma lenda. Já tinha feito história nos velhos tempos, mas todos achavam que tinha batido as botas na Gripe de 10. Acabo de saber que alguém que já foi meu melhor amigo não só está vivo como é o verdadeiro dono da Disco Inferno. Me sinto estúpido por só saber disso agora. Drako bate três palmas e tudo volta ao normal. Nunca vi alguém que goste tanto de aplaudir.
- Não fala o nome dele, animal.
- Foi mal. Sempre pensei que a Disco fosse tua.
- Vendi pro Ferreira faz 5 anos. Agora só gerencio.
- Onde ele está? Preciso falar com ele agora.
- Moscou. E não temos teletransportador aqui.
- É a segunda vez que alguém me fala de Moscou hoje.
- Ele volta de lá na semana que vem. Tens sete dias pra trazer o fardo.
- Tu falaste que sou eu?
Drako levanta do trono. Coloca uma pistola de chip no meu pescoço e injeta o mecanismo. Um timer no touch da pistola dá uma regressiva. Uma bomba. Que espetáculo.
- Ele sabe.
- Não quer me dar um tapa-olho também?
- Tens até as 3 da manhã do dia 18 pra trazer a bebida. Com ela na mão, o Ferreira desativa o chip.
Confiança é tudo nesta vida. Apertamos as mãos. Só agora noto que as pernas do Drako são de fibra e menores do que deviam. Deve ter apostado as originais e perdido. Quase dou risada quando subimos as escadas. Chegamos numa porta de metal arranhada e o gerente a abre num rangido fantasmagórico. Basi está nu, encolhido no aposento que não deve ter mais que um metro quadrado. Há cortes suturados e queimaduras em seu corpo. Tudo recente. Olho para Drako e este encolhe os ombros. Se ele faz isso com os atores, imagino o que não deve fazer com os roteiristas. Digo que preciso das roupas do Basi. Adivinha o que o gerente faz?
Bate palmas.
Saímos da Disco Inferno. Prometi ao Drako que traria minha namorada aqui quando arrumasse uma, logo depois de receber instruções para ficar dois quarteirões longe de qualquer ser vivo se acaso não conseguir chegar em tempo para desativar a bomba. Animador pacas. O Basi segue dormindo. Tive de drogá-lo e colocá-lo num daqueles carrinhos de supermercados antigos. Ele desaprovaria o que estou para fazer pra sair do Buraco antes das 24 horas findarem e do meu tempo de apelação expirar. Confiro minha lista de afazeres no Palm:
1 – Sair do Buraco;
2 – Procurar um Juíz de Rua e provar minha inocência;
3 – Surrar o Basi;
4 – Arrumar um fardo de cerveja e arriscar Pena de Morte novamente;
5 – Trazer o treco para o Ferreira e desativar a bomba.
6 – Beber a metade do fardo.
Céus, preciso de uma cerveja...e de um helicóptero.
3 comentários:
Eu tb quero uma cerveja! Mas acho que vou ter de me contentar com uma cachaça mineira que meu irmão me deu de presente de Natal. É a vida...
Depois de aproximadamente 10 anos a saga que conquistou uma geração é reformulada e reinventada. Depois de inúmeras tentativas fracassadas de dar continuidade a saga, Édnei Pedroso resgata e empoeirada fórmula de unir os G6, mesmo que em texto e dá uma nova e revigorada vida a idéia. Lugares duvidosos, pessoas mal intencionadas, sujeira, escárnio e perigo rondam novamente as ruas de Porto Alegre. Com novos personagens, novas camadas da trama sendo reveladas, eis um clássico moderno como nunca se viu.
Lido. E somente isso é o meu comentário.
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