Faz uns dias que tenho reprisado, no meu parco tempo livre, algumas relíquias que havia visto quando era apenas um guri de Corujão, em uma época na qual eu ainda não tinha o apurado gosto para a análise cinematográfica, mas já via algo de muito especial nos clássicos da madruga.
Dessas pérolas que marcaram a minha infância (lá pelos meus 12 anos, quando não tínhamos de encarar bombas como o Inter-Cine) destacavam-se nas madrugadas os filmes do Lobo Solitário (Kozure Okami em japonês, ou Lone Wolf & Cub em inglês), expoentes brilhantes do cinema japonês, baseados na obra-prima do mangaka (criador de mangás) Kazuo Koike.
Estes filmes, datados dos primeiros anos da década de 70, combinavam a engenhosa história dos gekigás (dos quais virei fã graças aos filmes) com o estilo belo e visceral do diretor Kenji Misumi (diretor de 4 dos 6 filmes), que usava e abusava de belas paisagens e violência extrema, aliados à coreografias e duelos marcantes.
A história gira em torno de Itto Ogami – um membro do alto escalão do Shogunato – e Daigoro, seu filho único de 3 anos, ambos jogados à marginalidade após Itto ter sido acusado injustamente de tramar contra o Shogun, em um ardil arquitetado por um clã rival que almejava o posto ocupado pelo samurai. Com a esposa assassinada e o nome do clã Ogami jogado na lama, Itto e seu filho são obrigados a perambular errantes pelo Japão.
Até aí, seria a velha história do homem inocente que se vê vítima de um complô, vista em tantos outros filmes. Porém, estamos falando do Japão Feudal em pleno declínio, e de um homem que passa longe de ser comum, ou mesmo de ser uma pacata “vítima”: Itto Ogami era o Kaishakunin (o executor oficial do Shogun, único autorizado pelo próprio a executar os senhores feudais que saíam da linha), e como tal, é um especialista na arte da espada, da luta e da estratégia. Como matar é a única coisa que sabe fazer, Ogami decide vender seus serviços através de assassinatos encomendados. Surge a lenda do Lobo Solitário e Filhote.
Com a competência de roteiro do próprio Koike, a saga de Itto é apresentada exatamente como nas HQs. Com tendências claras ao faroeste (fazendo o caminho inverso do conterrâneo Akira Kurosawa, que foi plagiado por John Sturges em Sete Homens e um Destino), os diretores não poupam o espectador de nada, uma vez que a engenhosidade com a qual o Lobo Solitário executa suas mortes, e a violência com a qual se defende dos oponentes são assinaladas com cenas fortíssimas de mutilações, desmembramentos, decapitações e sangue jorrando pra todo lado, em um espetáculo de horror que poderia muito bem ser confundido com o gore e o trash, SE fosse algo desnecessário, ou mesmo mal feito. A verdade é que não há melhor forma de ilustrar a selvageria dos personagens e das situações apresentadas, senão pintando a tela de vermelho (podemos ver uma homenagem contemporânea ao estilo em Kill Bill - Vol. 1, na cena em que A Noiva enfrenta os 88 Malucos).
Há de se perceber que, embora a trama, a direção, as coreografias e a produção de época fossem muito competentes, são justamente os protagonistas quem fazem de Lone Wolf & Cub espécimes tão especiais. Como um samurai decadente (mais precisamente um ronin), Itto Ogami abraça a trilha do assassino com severidade e um código de honra bizarro: se em um momento aparece para salvar o dia e a vida de alguém, no outro não se importa em observar uma mãe e sua filha sendo mortas por mercenários, mesmo podendo fazer algo para impedir. Para aceitar um trabalho, as únicas exigências do Lobo Solitário são 500 Ryos e uma história: o contratador precisa contar na íntegra o motivo pelo qual precisa matar o alvo, não importando se esta vítima for um líder de Clã, a reencarnação do Buda, ou mesmo uma família inteira.
Uma vez contratado, Ogami não mede esforços para concluir seu objetivo (não importando o quão difícil possa ser), demonstrando uma motivação titânica que é superada apenas por seu instinto de sobrevivência (mesmo sendo um espadachim inigualável, Itto não titubeia em usar seu filho como escudo apenas para contar com a piedade de seu rival e usar desta fraqueza para definir a luta), e sua inteligência para sair de situações impossíveis (como lutar com o filho pendurado nas costas contra um samurai que tem o sol se pondo atrás de si). Por sua vez, Daigoro (muito bem representado pelo piá Akihiro Tomikawa, o qual hoje deve ser um quarentão) mostra-se um menino calado, de bom coração e absolutamente sem medo, que poderia passar despercebido pela trama, se não fosse pela sua gradual constituição em um futuro grande guerreiro, pelo seu carrinho de bebê (acreditem, eu teria de escrever um texto inteiro só pra falar desse engenhoso...meio de transporte) e por sua principal função, que é a de fazer o contraponto com o pai, mantendo Itto dentro de uma realidade mais humana, onde o Lobo Solitário não age sozinho: por mais que o assassino seja capaz de deixar seu filho ser açoitado para mostrar um ponto de vista, precisa zelar pelo Filhote.
Paradoxalmente, embora coloque a vida de Daigoro em risco eventualmente, sua preocupação e amor pelo filho são algo quase tangíveis, graças a atuação espetacular de Tomisaburo Wakayama, que mesmo sendo muito diferente fisicamente de sua versão no gekigá, simplesmente se transforma no Lobo Solitário, de tal forma que é impossível imaginar outro ator no papel depois de ver esses filmes (digo isto pela fato do personagem ter ganhado dois seriados anos mais tarde, mas sem contar com Wakayama no papel-título), ou mesmo não simpatizar com Itto Ogami, mesmo que ele cometa algumas atrocidades no decorrer das projeções.
O terceiro personagem marcante é o próprio Japão. Lembro que – mesmo quando era moleque – já me fascinava o modo como o Japão Feudal, palco de uma cultura milenar cuja base era a honra e o respeito de castas, era retratado com malícia e desalento, um país decadente, onde os poderes concedidos aos clãs e aos órgãos públicos daquela época já eram notadamente deturpados; onde a honra era tão figurativa e extinta quanto os poucos samurais que perambulavam no final daquela era: Daimyos se negavam a cometer o Sepukku (ritual de suicídio para recuperação da honra), alguns samurais usavam armas de fogo (deixando a tradição da lâmina de lado por influência ocidental), roubos, estupros e outras atrocidades aconteciam pelas estradas, articulações políticas eram feitas por debaixo dos panos (isso não mudou tanto assim com o passar do tempo, né?) e a vida de alguém valia apenas o som de uma espada cortando ar e carne.
Bem-vindo ao mundo do Lobo Solitário.
***
Dessas pérolas que marcaram a minha infância (lá pelos meus 12 anos, quando não tínhamos de encarar bombas como o Inter-Cine) destacavam-se nas madrugadas os filmes do Lobo Solitário (Kozure Okami em japonês, ou Lone Wolf & Cub em inglês), expoentes brilhantes do cinema japonês, baseados na obra-prima do mangaka (criador de mangás) Kazuo Koike.
Estes filmes, datados dos primeiros anos da década de 70, combinavam a engenhosa história dos gekigás (dos quais virei fã graças aos filmes) com o estilo belo e visceral do diretor Kenji Misumi (diretor de 4 dos 6 filmes), que usava e abusava de belas paisagens e violência extrema, aliados à coreografias e duelos marcantes.
A história gira em torno de Itto Ogami – um membro do alto escalão do Shogunato – e Daigoro, seu filho único de 3 anos, ambos jogados à marginalidade após Itto ter sido acusado injustamente de tramar contra o Shogun, em um ardil arquitetado por um clã rival que almejava o posto ocupado pelo samurai. Com a esposa assassinada e o nome do clã Ogami jogado na lama, Itto e seu filho são obrigados a perambular errantes pelo Japão.
Até aí, seria a velha história do homem inocente que se vê vítima de um complô, vista em tantos outros filmes. Porém, estamos falando do Japão Feudal em pleno declínio, e de um homem que passa longe de ser comum, ou mesmo de ser uma pacata “vítima”: Itto Ogami era o Kaishakunin (o executor oficial do Shogun, único autorizado pelo próprio a executar os senhores feudais que saíam da linha), e como tal, é um especialista na arte da espada, da luta e da estratégia. Como matar é a única coisa que sabe fazer, Ogami decide vender seus serviços através de assassinatos encomendados. Surge a lenda do Lobo Solitário e Filhote.
Com a competência de roteiro do próprio Koike, a saga de Itto é apresentada exatamente como nas HQs. Com tendências claras ao faroeste (fazendo o caminho inverso do conterrâneo Akira Kurosawa, que foi plagiado por John Sturges em Sete Homens e um Destino), os diretores não poupam o espectador de nada, uma vez que a engenhosidade com a qual o Lobo Solitário executa suas mortes, e a violência com a qual se defende dos oponentes são assinaladas com cenas fortíssimas de mutilações, desmembramentos, decapitações e sangue jorrando pra todo lado, em um espetáculo de horror que poderia muito bem ser confundido com o gore e o trash, SE fosse algo desnecessário, ou mesmo mal feito. A verdade é que não há melhor forma de ilustrar a selvageria dos personagens e das situações apresentadas, senão pintando a tela de vermelho (podemos ver uma homenagem contemporânea ao estilo em Kill Bill - Vol. 1, na cena em que A Noiva enfrenta os 88 Malucos).
Ketchup!
Há de se perceber que, embora a trama, a direção, as coreografias e a produção de época fossem muito competentes, são justamente os protagonistas quem fazem de Lone Wolf & Cub espécimes tão especiais. Como um samurai decadente (mais precisamente um ronin), Itto Ogami abraça a trilha do assassino com severidade e um código de honra bizarro: se em um momento aparece para salvar o dia e a vida de alguém, no outro não se importa em observar uma mãe e sua filha sendo mortas por mercenários, mesmo podendo fazer algo para impedir. Para aceitar um trabalho, as únicas exigências do Lobo Solitário são 500 Ryos e uma história: o contratador precisa contar na íntegra o motivo pelo qual precisa matar o alvo, não importando se esta vítima for um líder de Clã, a reencarnação do Buda, ou mesmo uma família inteira.
Uma vez contratado, Ogami não mede esforços para concluir seu objetivo (não importando o quão difícil possa ser), demonstrando uma motivação titânica que é superada apenas por seu instinto de sobrevivência (mesmo sendo um espadachim inigualável, Itto não titubeia em usar seu filho como escudo apenas para contar com a piedade de seu rival e usar desta fraqueza para definir a luta), e sua inteligência para sair de situações impossíveis (como lutar com o filho pendurado nas costas contra um samurai que tem o sol se pondo atrás de si). Por sua vez, Daigoro (muito bem representado pelo piá Akihiro Tomikawa, o qual hoje deve ser um quarentão) mostra-se um menino calado, de bom coração e absolutamente sem medo, que poderia passar despercebido pela trama, se não fosse pela sua gradual constituição em um futuro grande guerreiro, pelo seu carrinho de bebê (acreditem, eu teria de escrever um texto inteiro só pra falar desse engenhoso...meio de transporte) e por sua principal função, que é a de fazer o contraponto com o pai, mantendo Itto dentro de uma realidade mais humana, onde o Lobo Solitário não age sozinho: por mais que o assassino seja capaz de deixar seu filho ser açoitado para mostrar um ponto de vista, precisa zelar pelo Filhote.
Paradoxalmente, embora coloque a vida de Daigoro em risco eventualmente, sua preocupação e amor pelo filho são algo quase tangíveis, graças a atuação espetacular de Tomisaburo Wakayama, que mesmo sendo muito diferente fisicamente de sua versão no gekigá, simplesmente se transforma no Lobo Solitário, de tal forma que é impossível imaginar outro ator no papel depois de ver esses filmes (digo isto pela fato do personagem ter ganhado dois seriados anos mais tarde, mas sem contar com Wakayama no papel-título), ou mesmo não simpatizar com Itto Ogami, mesmo que ele cometa algumas atrocidades no decorrer das projeções.
O terceiro personagem marcante é o próprio Japão. Lembro que – mesmo quando era moleque – já me fascinava o modo como o Japão Feudal, palco de uma cultura milenar cuja base era a honra e o respeito de castas, era retratado com malícia e desalento, um país decadente, onde os poderes concedidos aos clãs e aos órgãos públicos daquela época já eram notadamente deturpados; onde a honra era tão figurativa e extinta quanto os poucos samurais que perambulavam no final daquela era: Daimyos se negavam a cometer o Sepukku (ritual de suicídio para recuperação da honra), alguns samurais usavam armas de fogo (deixando a tradição da lâmina de lado por influência ocidental), roubos, estupros e outras atrocidades aconteciam pelas estradas, articulações políticas eram feitas por debaixo dos panos (isso não mudou tanto assim com o passar do tempo, né?) e a vida de alguém valia apenas o som de uma espada cortando ar e carne.
Bem-vindo ao mundo do Lobo Solitário.
***
Dica de filme:
1 - Lone Wolf and Cub: Sword of Vengeance
Diretor: Kenji Misumi
Elenco: Tomisaburo Wakayama (Itto Ogami), Akihiro Tomikawa (Daigoro), Tokio Oki (Retsudo Yagyü)
Duração: 83 minutos
Gênero: Ação
Ano: 1972
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Diretor: Kenji Misumi
Elenco: Tomisaburo Wakayama (Itto Ogami), Akihiro Tomikawa (Daigoro), Tokio Oki (Retsudo Yagyü)
Duração: 83 minutos
Gênero: Ação
Ano: 1972
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2 - Lone Wolf and Cub: Baby Cart at the River Styx
Diretor: Kenji Misumi
Elenco: Tomisaburo Wakayama (Itto Ogami), Akihiro Tomikawa (Daigoro), Kayo Matsuo (Sayaka Yagyü)
Duração: 81 minutos
Gênero: Ação
Ano: 1972
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Diretor: Kenji Misumi
Elenco: Tomisaburo Wakayama (Itto Ogami), Akihiro Tomikawa (Daigoro), Kayo Matsuo (Sayaka Yagyü)
Duração: 81 minutos
Gênero: Ação
Ano: 1972
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3 - Lone Wolf and Cub: Baby Cart to Hades
Diretor: Kenji Misumi
Elenco: Tomisaburo Wakayama (Itto Ogami), Akihiro Tomikawa (Daigoro), Go Kato (Kanbei)
Duração: 89 minutos
Gênero: Ação
Ano: 1972
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Diretor: Kenji Misumi
Elenco: Tomisaburo Wakayama (Itto Ogami), Akihiro Tomikawa (Daigoro), Go Kato (Kanbei)
Duração: 89 minutos
Gênero: Ação
Ano: 1972
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4 - Lone Wolf and Cub: Baby Cart in Peril
Diretor: Buichi Saito
Elenco: Tomisaburo Wakayama (Itto Ogami), Akihiro Tomikawa (Daigoro), Tatsuo Endo (Retsudo Yagyü)
Duração: 81 minutos
Gênero: Ação
Ano: 1972
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Diretor: Buichi Saito
Elenco: Tomisaburo Wakayama (Itto Ogami), Akihiro Tomikawa (Daigoro), Tatsuo Endo (Retsudo Yagyü)
Duração: 81 minutos
Gênero: Ação
Ano: 1972
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5 - Lone Wolf and Cub: Baby Cart in the Land of Demons
Diretor: Kenji Misumi
Elenco: Tomisaburo Wakayama (Itto Ogami), Akihiro Tomikawa (Daigoro), Minoru Ohki (Retsudo Yagyü)
Duração: 89 minutos
Gênero: Ação
Ano: 1973
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Diretor: Kenji Misumi
Elenco: Tomisaburo Wakayama (Itto Ogami), Akihiro Tomikawa (Daigoro), Minoru Ohki (Retsudo Yagyü)
Duração: 89 minutos
Gênero: Ação
Ano: 1973
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6 - Lone Wolf and Cub: White Heaven in Hell
Diretor: Yoshiyuki Kuroda
Elenco: Tomisaburo Wakayama (Itto Ogami), Akihiro Tomikawa (Daigoro), TMinoru Ohki (Retsudo Yagyü)
Duração: 83 minutos
Gênero: Ação
Ano: 1974
Desaconselhável para pessoas de estômago fraco e gosto limitado.
Diretor: Yoshiyuki Kuroda
Elenco: Tomisaburo Wakayama (Itto Ogami), Akihiro Tomikawa (Daigoro), TMinoru Ohki (Retsudo Yagyü)
Duração: 83 minutos
Gênero: Ação
Ano: 1974
Desaconselhável para pessoas de estômago fraco e gosto limitado.
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