segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Conversa de gente grande.

O que aconteceria se um dos maiores diretores do século XX conversasse com o maior mestre do suspense de todos os tempos, em uma entrevista com mais de 50 horas de duração?

Descobri nessa sexta passada, ao terminar de ler Hitchcock/Truffaut, uma transcrição absurdamente bem acabada e completíssima do ciclo de entrevistas que François Truffaut fez com Alfred Hitchcock durante quatro anos, abordando a obra e a carreira do diretor inglês de forma completa, incisiva e analítica.

Hitch e seus bichinhos de estimação.

Fã confesso do Estilo Hitchcock e grande amigo do cineasta, Truffaut guiou a entrevista através de uma linha de tempo baseada em cada um dos mais de 60 filmes de Hitchcock, começando pelo período do cinema mudo, quando Alfred era apenas um desenhista de títulos (quem desenhava e escrevia o que os atores falavam naqueles cartões pretos que apareciam na tela, para substituir o som das palavras) com pouco mais de vinte anos de idade. É fascinante como, desde cedo, Hitchcock manifestou um interesse extremo por todas as ferramentas do cinema (principalmente o americano): começou fazendo letreiros e passou por quase todas as funções dos bastidores, sempre assimilando o que aprendia e implementando sua perspicácia. Não demorou muito para que o chamassem para funções maiores, até que ascendeu para a assistência de direção e, em seguida, para a direção (na mesma época em que conheceu e cortejou a continuísta e editora Alma Reville, que veio a tornar-se sua companheira até o fim).

Com o peculiar senso de humor que o tornou tão famoso, Hitch enumera todas as agruras e curiosidades de cada um dos filmes, as maquinações e saídas criativas para trazer ao público efeitos nunca vistos até aquele momento. Temos, por exemplo, o teto de vidro onde o espectador podia ver o ator Ivor Novello andando de um lado para o outro no quarto acima (como o filme O Inquilino Sinistro era mudo, foi a saída que Alfred descobriu para mostrar a tensão dos passos acima das cabeças dos preocupados moradores do pensionato).

Teto de vidro: o inquilino sinistro caminha no quarto acima...

Outras curiosidades
como o fato de Hitchcock ter dirigido o primeiro filme sonoro britânico ou as manias perfeccionistas do diretor (como a de desenhar storyboards de cada tomada, tornando o filme hermeticamente planejado), ou mesmo o hábito de Alfred em fazer aparições em todos os seus longas, são colocadas na mesa por um astuto Truffaut, que relembra as cenas e peculiaridades dos filmes do entrevistado e aborda, com ganho de causa, nuances cinematográficas de cada um deles. Os dois diretores colocam em pauta as motivações dos personagens, a linguagem de câmera, o famoso “MacGuffin” (termo criado por Hitch para descrever um elemento da história que serve como impulso narrativo: crucial para o personagem, mas irrisório para o espectador), os problemas de recepção pelos críticos americanos e a notoriedade entre os europeus, inúmeros pontos que permitem que o próprio Hitchcock faça sua auto-crítica.

Para Hitchcock, cinema era um assunto sério.

A medida que a entrevista avança e a carreira de Hitchcock chega em Hollywood, o bom humor é amenizado – e por vezes anulado – por uma análise poderosa e imparcial de cada um de seus filmes e atores. Alfred fala das pessoas com as quais trabalhou, quem queria para determinado papel, e quem o estúdio o fez engolir. Sana o “mal-entendido” da famosa citação “Para mim, os atores são como gado” e atribui alguns de seus fracassos à suas fraquezas e à fraqueza de alguns outros (por exemplo, quando enumera que Um Corpo que Cai não fez o sucesso devido na época por causa do aspecto decadente de James Stewart, que já não era mais nenhum garotão.

O enxerido L.B.Jeffries está prestes a entrar numa fria em Janela Indiscreta.

Embora seja crítico e, por vezes, severo com suas próprias pérolas (e tenha sobrado até para Truffaut, quando Hitchcock diz que ficou constrangido com uma das cenas de Jules e Jim), percebe-se por toda a entrevista o lado terno e sentimental de Alfred Hitchcock, um homem que defende a idéia de usar o cenário para matar algum personagem e, no entanto, consterna-se quando encontra um subalterno de estúdio que, outrora, negou-lhe um emprego como desenhista de título. Demonstra o paradoxo de um diretor que mostrou como ninguém o romance, a malícia e o assassinato na tela e, mesmo sendo mestre nisso, casou-se virgem aos 25 anos e nunca conheceu outra mulher que não fosse sua esposa. Com a profundidade e extensão da entrevista, o próprio Hitchcock desabafa suas frustrações (como a de nunca ter ganhado um Oscar), seus medos (da Polícia, ou de ser agredido), e suas incapacidades (como a de nunca ter conseguido escrever com afinco, ficando sempre a mercê de outro roteirista).

Minha cena predileta de todos os filmes de Hitchcock:
Roger Thornhill fugindo de um aeroplano assassino em Intriga Internacional.


Além de informações cruciais, milimétricas e interessantes acerca de filmes como Janela Indiscreta, Intriga Internacional, Psicose e Os Pássaros (entre muitos outros), o livro traz também inúmeras fotos de bastidores, stills (inclusive dos filmes mais raros) e uma filmografia completa no final (junto com uma lista gigante de nomes de colaboradores, referenciados com números de página), além, claro, de fotos da própria entrevista, onde vemos Hitchcock gesticulando, argumentando, fazendo caras, bocas e fumando seu charuto, e vemos também um atento Truffaut que, mesmo sendo um ícone do cinema francês e mundial, tem a admiração e emoção de um garoto estampados no rosto.


François Truffaut concluiu este livro narrando seu ponto de vista sobre os últimos anos de Alfred Hitchcock, quando o mestre do suspense já se encontrava frágil, debilitado e havia fechado seu escritório na Unive
rsal Studios, vindo a falecer em seguida, no ano de 1980 (com seus 80 anos). Curiosamente, o próprio Truffaut viria também a falecer 4 anos depois de Hitchcock, vítima de um tumor no cérebro, aos 52 anos.

Hitchcock/Truffaut trata-se de uma fascinante e emocionante viagem pelo mundo do cinema em sua forma mais pura. É uma referência para quem gosta de cinema. É imprescindível para quem faz cinema. É descompromissado, divertido e, mesmo assim, é um legado contundente e emocionante de alguém que atingiu a plenitude de sua arte, que amava o cinema e alegava que seu amor por ele sobrepujava qualquer moral.


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Dica de Livro:

Hitchcock/Trufautt - Entrevistas: Edição Definitiva

Autor: François Truffaut
Pág: 368
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2004

Já enumerei o quanto este livro é obrigatório, então prefiro encerrar com uma excelente frase do homem:

"Alguns diretores filmam fatias de vida, eu filmo fatias de bolo."

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Complexo de Homem-Bomba.

Era um Dia dos Pais chuvoso quando eu estava numa parada de ônibus com meia dúzia de futuros passageiros. Quase nada chamava a atenção em qualquer um deles, com exceção de um intrincado debate entre dois senhores: um de 60 anos e outro de 66. Sei disso porque eles fizeram questão de anunciar a idade um para o outro, como se as infindáveis rugas e o escasso cabelo branco fossem um atestado de sabedoria.

A pauta em questão era peculiar: o mais novo defendia que o Brasil está na merda em que está (salário mínimo ridículo, roubalheira, impunidade, etc, etc, etc) porque não havia homem com fibra para usar uma bomba e se explodir (e explodir algo junto) em protesto. O mais velho negava que isso fizesse qualquer diferença e profetizava que “violência gera violência”.

Quanto mais o assunto era aprofundado, mais o senhor de 60 dava indícios de seu complexo de homem-bomba. Dizia que os árabes é que estavam certos e que só assim para resolver as coisas e ter algum resultado. Me ocorreu, de imediato, que a maioria do povo árabe vive no caos e na subsistência constante, então, não conseguia ver onde estava o sucesso, e nem o tal senhor deu qualquer exemplo do que estava falando. Ele apenas refutava o mais velho enumerando todas as barbaridades que fazem o Brasil ter a fama que tem entre os próprios brasileiros: um país onde tudo acontece e nada é feito. O extremista completou que só não fazia nada mais prático porque já estava velho, mas se pudesse, “se explodiria e levaria muitos com ele” (pelo menos, a parka camuflada ele já estava vestindo).

Entramos todos no ônibus e me pus a observar os dois senhores: o mais velho sentou-se na frente, no lugar reservado para idosos; o homem-bomba passou a roleta e sentou-se num dos bancos finais, ao lado de uma senhora. Preciso dizer que olhei para ele por mais uns 30 segundos e fiquei abismado com a facilidade com que um homem com idéias tão raivosas se perde na multidão. Assim como ele sentou-se ao lado da mulher, poderia estar sentado ao meu lado, e eu jamais saberia que ele tinha um ponto de vista tão antagônico.

Quando ele se perdeu entre os outros, escorei a cabeça na janela e me coloquei a imaginar que alvo seria digno, no Brasil, de um ataque terrorista. Sequer precisei fechar os olhos para que o Senado da República viesse como forte candidato na minha cabeça. Lembrei das notícias, dos processos arquivados, dos homens escolhidos pelo povo e que, ao invés de lutarem por esse mesmo povo, roubam milhões dele.

Abomino a idéia de usar uma bomba, ou qualquer outro tipo de violência, para “solucionar” algo que pode ser resolvido através da comunicação. Acho que o terrorismo é a maior expressão do que o homem não deve se tornar e sempre pensei desta forma, mas é triste, muito triste pensar que, se uma bomba explodisse no Senado, certamente o povo não choraria.

Chegamos no ponto em que os políticos tiram tudo de nós, inclusive a nossa humanidade.