quarta-feira, 6 de maio de 2009

Diário de Bordo...

Assim como 99% dos textos escritos sobre o assunto, inicio este post com um dos bordões mais famosos da história da ficção científica: “Diário de Bordo: Data Estelar...” era o OFF que abria os trabalhos em cada viagem de uma certa nave estelar, em uma saudosa série de TV, lá pelos idos da década de 60, e que ganha uma nova roupagem em um longa-metragem dirigido pelo competente J. J. Abrams, com estréia mundial marcada para depois de amanhã.

Com 80 episódios distribuídos em três temporadas, Star Trek: The Original Series fez história ao trazer para as telas as aventuras da nave Enterprise e sua tripulação, que exploravam novos mundos, novas formas de vida e civilizações, e enfrentavam desafios inimagináveis em pleno século XXIII, 200 anos após a humanidade descobrir a velocidade de dobra (que possibilitava as viagens estelares).

Eram os tempos do Capitão James T. Kirk, comandante da nave que, ao lado do Dr. Leonard McCoy e do Sr. Spock, formava a tríade de protagonistas da série, cujas histórias, embora calçadas em um universo futurista e tecnológico, eram visivelmente baseadas nos problemas da realidade dos anos 60: a Guerra Fria, os conflitos raciais, os desvios da juventude, a proliferação de tribos e novos estilos de vida (como a onda hippie, por exemplo), entre muitas outras coisas, eram abordados de uma forma alegórica, mas muito contundente, não somente conferindo certa responsabilidade social à série, mas inovando em narrativas muito mais cerebrais do que se estava acostumado a ver nos programas de entretenimento.

Para se ter uma idéia dos muitos precedentes criados pela série, a tripulação da ponte de comando da Enterprise era formada por oficiais de toda sorte de nacionalidades: o Engenheiro-Chefe era escocês, o piloto (timoneiro) japonês, uma africana (das Nações Unidas da Africa) era a oficial de comunicações da nave e se fazia presente, até mesmo, um alferes russo (no alge da Guerra Fria, vale lembrar). Esta cacofonia de nações era apenas um dos aspectos idealizados por Gene Roddenberry (o criador da série), que cansava de dizer nas entrevistas que Star Trek era o futuro com o qual ele sonhava, onde os humanos haviam vencido a fome, a miséria, o preconceito e as doenças, e se concentravam na exploração do espaço (a famosa “fronteira final”).

Mas nem só de parábolas eram feitos os atrativos de Star Trek. Além dos temas fascinantes, que muitas vezes abordavam teorias de grandes escritores (como, por exemplo, a de que os antigos deuses eram, na verdade, astronautas alienígenas) e previsões debatidas por grandes pensadores (como a ascenção dos computadores em detrimento da utilidade laboral do homem na sociedade), os personagens possuíam (e ainda possuem, por quê não dizer) um carisma e personalidades difíceis de serem superados. Mesmo com a posterior criação de outras séries (mais bem feitas ou com melhores histórias) baseadas na franquia, é praticamente unânime que a popularidade da série original continua imbatível, justamente por causa de seus protagonistas, cuja profundidade de seus papéis marcaram seus respectivos atores para sempre. E não é para menos...

“He’s dead, Jim!”
Dr. Leonard McCoy

O Dr. McCoy (muito bem retratado pelo ator DeForest Kelley) é um médico turrão, sem papas na língua para dar palpites e totalmente emocional. Sua personalidade quase provinciana demorou alguns episódios para engrenar, mas encontrou o seu alicerce no contraponto com Spock. As discussões entre o médico e seu colega de sangue verde renderam verdadeiras pérolas em forma de diálogos, e o nome de Kelley, merecidamente, foi marcado nos créditos iniciais dos episódios a partir da 2ª temporada, ao lado dos já creditados William Shatner e Leonard Nimoy (Kirk e Spock respectivamente). Como médico-chefe e psicólogo da nave, McCoy também serve de âncora para o Capitão, que vê no médico um apoio psicológico em momentos de crise (ou seja, em todos os episódios) e um escudo para argumentar com seu Oficial de Ciências.

“Fascinating.”

Sr. Spock

Como Oficial de Ciências e Sub-Comandante da nave, o Sr. Spock e suas orelhas pontudas dispensam apresentações. Calmo, lógico e virtualmente infalível como qualquer vulcano, Spock e suas análises já salvaram a Enterprise mais vezes do que há para se contar. Sua frieza em momentos críticos e a aparente falta de emoções são os alvos principais do Dr. McCoy, o qual normalmente é replicado com frases como “Doutor, fico profundamente agraciado com o fato de não possuir a mesma fisiologia que você”.

Spock, McCoy e muitos Tribbles.

Embora seja um ser pragmático, Spock também possui um viés emocional ocultado por sua batalha pela conquista da lógica. Como híbrido de um vulcano com uma terráquea, Spock reprime seu lado humano em prol de sua busca por uma identidade inteiramente vulcana. Esta iniciativa possibilita que o oficial execute seu trabalho com extrema eficiência e alto-controle, porém, condena o Sub-Comandante a nadar em um mar de conflitos internos. No episódio Bread and Circuses, McCoy sintetiza o drama de Spock na comovente constatação de que o vulcano não tem medo de morrer, mas sim de viver, pois cada dia é um dia a mais onde Spock pode falhar.

A verve vulcana de Spock só não é maior que sua fidelidade inabalável à seu melhor amigo e comandante, o qual, mesmo em situações ilógicas, aprendeu a respeitar e admirar. Estes extremos de abandono da humanidade e a lealdade incondicional por um humano, raça considerada “inferior” pelos vulcanos, tornam o Sr. Spock um dos personagens mais emblemáticos de todos os tempos.

“...to bolbly go where no man as gone before.”

Capitão James T. Kirk

James Tiberius Kirk é o intrépido capitão da USS Enterprise. Sua pose de galã e atração pelas mulheres lhe renderam algumas críticas e olhos tortos do público logo no início (certamente uma artimanha dos produtores para atrair um público-alvo também feminino), mas essa característica fútil se perde ao se reparar um pouco melhor no personagem extremamente complexo que é Jim Kirk.

Com um grande senso de justiça, altruísmo e bondade, o Capitão Kirk tem a firmeza de um almirante no comando da nave. Embora gentil, não é raro que use de sua autoridade para justificar suas ordens (muitas baseadas em sua vasta experiência, outras em seu feeling) no maior estilo “Isto é uma ordem, Sr. Sulu. Obedeça!”. Esta prerrogativa lhe confere, às vezes, ares de arrogante perante o público mais leigo (aquele que assistiu somente uns dois ou três episódios), mas a grande verdade é que Kirk sempre sabe o que está fazendo, e consegue ser condescendente quando está errado (o que é muito difícil de acontecer). Suas soluções são imbuídas de uma bagagem que mistura (a já citada) experiência, malandragem, estratégia, sorte (um bocado dela), bem como uma porção maquiavélica latente. Ele é bondoso, mas nem sempre é um bom sujeito (isso é literalmente mostrado no episódio The Enemy Within, onde dois Kirks, um bonzinho e um malvado, perambulam pela Enterprise, e chega-se a conclusão de que nenhum dos dois é capaz de, sozinho, comandar a nave).

Kirk malvado (medo).

Além desta característica matreira, o Capitão Kirk também possui um elo quase doentio com seu posto de comando. São poucos os episódios que mostram sua ligação quase matrimonial com a Enterprise, mas os mesmos são tão contundentes que é impossível de ignorar esta faceta de sua personalidade. Para ilustrar o quão obsessiva é a necessidade de Kirk de comandar ESPECIFICAMENTE a Enterprise, basta relembrar o episódio This Side of Paradise, onde toda a tripulação estava sob o efeito de um pólen alienígena e todos haviam sido “intimados” a abandonar a nave e povoar uma colônia. Graças ao trauma de deixar a Enterprise, Kirk se desvencilha do poder do pólen (ao passo que o trauma de Spock era o de ser considerado uma aberração por sua condição de híbrido, o que corrobora seus dramas já citados).

“These are the voyages of StarShip Enterprise...”

O quarto, e talvez o maior personagem da série (pelo menos literalmente), é a USS Enterprise NCC-1701: uma nave com capacidade para 430 tripulantes, possuidora de duas naceles e com capacidade para chegar a Dobra 9. Seu design não muito moderno é baseado em teorias reais de exploração espacial, e pode parecer estranho, num primeiro momento, mas acaba sendo funcional e elegante (afinal, para se viajar mais rápido que a luz, nada mais justo do que motores gigantescos para impulsionar o resto). É engraçado de se ver, no seriado, o afeto que o Eng. Scott possui com a nave e, principalmente, com esses motores. É garantido que este carinho acaba ficando inerente não só nos personagens, mas posteriormente no público que se acostuma a acompanhar a série, concedendo à nave uma personalidade toda própria (mesmo que, na série original, todas as naves estelares da Federação sejam visualmente iguais).

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"Energize!"

Com problemas de toda ordem encontrados pela Enterprise (que variavam de seres onipotentes à doenças desconhecidas, de ameças de guerras intergalácticas à dramas pessoais acionados por algum fator externo, entre outros), a série tinha também o ônus da parca disponibilidade de recursos da produção. Não havia grana para bancar maquetes de várias naves, e os tripulantes tinham que interagir com algo no espaço (ou visitar planetas). As soluções para estas interpéries foram mais do que bem-vindas: para o pouso nos planetas, usou-se o artifício do teletransporte, que rendeu não apenas uma forma eficiente e econômica de mostrar uma abordagem sem precisar de nave, mas protagonizou plots de diversos episódios e constituiu-se numa ferramenta para solução de diversos problemas apresentados aos nossos heróis. As batalhas espaciais então, nem se fala: quando a nave entrava em alerta vermelho, os diretores mostravam apenas a ponte e os tripulantes em seus postos de batalha (sem mostrar qualquer interação externa). Quando a Enterprise era atingida, os atores se limitavam a se jogar para todos os lados num “efeito terremoto”, e quando a nave inimiga era destruída, mostravam apenas uma explosão (meio tosca, é verdade, afinal, era 1966). O fato da Enterprise encontrar somente planetas “Classe M” (nas mesmas condições de atmosfera da Terra) nas suas jornadas também eram excelentes saídas para a verba curta, evitando o gasto com roupas espaciais.

Capitão Pike e Spock em "The Cage" - Episódio-Piloto que nunca foi ao ar.

Quando Roddenberry produziu seu episódio-piloto, os estúdios simplesmente cancelaram o programa antes mesmo de exibí-lo, devido ao “roteiro intrincado e inteligente demais para os padrões televisivos”. Após muita choradeira e uma concessão que era inédita até aquele momento, os estúdios exigiram a produção de outro episódio-piloto, com orçamento ainda mais apertado e trocando toda a tripulação original. Reza a lenda que Gene bateu o pé, fez bico e abriu mão de muita coisa para, pelo menos, manter o Sr. Spock. E assim se fez: saía de cena o Capitão Christopher Pike e entrava o Capitão Kirk e cia...e começava uma história fantástica com ramificações e franquias em TV, cinema, livros, games, roupas e, até mesmo, pratos de porcelana.

Mas é fato que, desde o término da série Enterprise (que retratava os primórdios da exploração espacial humana dentro do universo Star Trek) em 2005, nada mais foi feito para reanimar a franquia nas telas. E fora a minha paixão por este universo, é esta a razão pela qual escrevo hoje esta mini-epopéia sobre a série clássica. Aqueles mesmos personagens apaixonantes, que fascinaram nossos pais e avós, foram reanimados e ganham as telas do cinema mais uma vez. Há uma torcida muito grande por parte dos Trekkies (provavelmente a raça de fãs mais leal de todas as culturas populares) para que este evento reviva o interesse geral por Star Trek. Eu não sou um Trekkie (acho que eu precisaria saber mais do que sei para ser um), mas torço para que J.J. Abrams tenha sucesso, e nos traga algo...fascinante.

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