Tá certo que este ano não é exatamente um ano de clássicos, mas Batman – O Cavaleiro das Trevas veio mostrar que até as franquias de super-heróis podem ter um Poderoso Chefão 2, como citou Kevin Smith sobre o novo filme do Homem-Morcego.
Além de estourar alguns recordes em sua estréia, o longa traz todos os predicados que fizeram do último filme um sucesso de público e, principalmente, de crítica, e vai além: eleva estes predicados a um patamar que ficará difícil de ser superado.
O nome desse milagre, claro, é Christopher Nolan. O diretor e roteirista britânico não se contentou em imprimir realidade ao universo de Batman. Ele redefiniu história, personagens, dramas e criou uma mitologia que disseca o estígma do Morcego como um sapo. A habilidade de Nolan com filmes cerebrais já era incontestável. Desta vez, seu produto alcançou um status nunca visto antes nas telas em filmes de “super-heróis”, mas já retratado nos quadrinhos através de histórias viscerais como A Piada Mortal de Alan Moore ou Batman: Cavaleiro das Trevas de Frank Miller.
Começa com a escolha do nome do filme. Os fãs de HQs chiaram com o fato de Nolan ter roubado o título da obra-prima de Miller, mas depois de se assistir ao longa (e ao seu desfecho), há de se admitir que tal escolha é mais que justificada. Talvez até tenha sido a única alternativa. Além disso, Batman – O Cavaleiro das Trevas não é um filme sobre Batman. Na verdade, é possível que ele nem seja o personagem principal desta história fantástica. Se fosse arriscar, diria que é um filme sobre pessoas em um dia ruim, sobre o fundo do poço e até onde algumas dessas pessoas ousam ir para fazer o que é certo ou o que julgam ser certo (mesmo que este “certo” seja explodir dois navios cheios de gente para fazer um “experimento social”).
A figura do Batman entra em xeque quando percebe-se a tal “evolução” pré-anunciada pelo Tenente Gordon (Gary Oldman) no filme anterior: “se usamos semi-automáticas, eles revidam com automáticas. Se usamos Kevlar, eles usam munição perfurante. Se um vigilante usa máscara para combater o crime...” O surgimento de pessoas inspiradas pelo Homem-Morcego, tanto para o bem quanto para o mal, acaba mostrando a necessidade de Gotham City em ter um novo tipo de herói: alguém de cara limpa, que caminha dentro da lei e, mesmo assim, consegue fazer justiça. Neste contexto, entra em cena o carismático promotor público Harvey Dent (Aaron Eckhart), auxiliado pela assistente de promotoria Rachel Dawes (Maggie Gyllenhall, substituindo a insonsa Katie Holmes). Com a lei, alguma ousadia e nada mais que isso, Dent consegue colocar metade dos criminosos de Gotham atrás das grades em uma tacada só, dando um fio de esperança ao povo de Gotham e ganhando o apelido de “Cavaleiro Branco”.
É claro que a festa acaba (ou começa) quando o Coringa (Heath Ledger) entra na parada para promover o caos, a anarquia e abrir muitos sorrisos. A cena inicial de um assalto a banco é uma das melhores e mais engenhosas que já vi. Por ser simples, por ser sóbria e, mesmo assim, por ser a cara do Palhaço do Crime. Genial, mas dá apenas uma noção do abacaxi que Batman, Gordon, Dent e o povo de Gotham terão de descascar para manter sua sanidade. Aliás, talvez este filme também seja sobre isso: a luta pela sanidade de uma cidade mergulhada no crime. Não de um modo químico, como visto no filme anterior, mas um duelo moral, psicológico, que joga todos os personagens num microscópio. Bruce Wayne (Christian Bale), mais rico e poderoso do que nunca, fica em dúvida se o Batman ainda se faz necessário. Jim Gordon sofre ao constatar que, mesmo comandando um Departamento de Polícia, não pode confiar em ninguém. Harvey Dent rema contra uma maré impossível e carrega o fardo de ser um arauto de mudanças numa cidade em estado de sítio. Até mesmo o inventor Lucius Fox (Morgan Freeman) tem um embate ético com Bruce Wayne acerca da utilização de um de seus equipamentos, numa versão de “o fim justifica os meios”. O Coringa? Ah, esse aí joga todos os outros no liquidificador só pra ver que gosto vai ter...mas falarei mais do Coringa logo adiante...
Além do roteiro conciso e de uma direção muito mais caprichada nas cenas de suspense do que na ação (que, embora não comprometa, nunca foi o forte de Nolan), o filme nos traz excelente produção e trilha sonora. A arte se puxou na confecção da estética e na representação dos personagens e de Gotham, que tem muito mais cenas de dia do que de noite. Os efeitos de explosão foram feitos à moda antiga, num único take, bem como a cena do caminhão capotando. O mais interessante é que não há cenas ou ações desnecessárias no longa. Tudo tem o embasamento certo dentro da narrativa, que é pontuada pela excelente trilha sonora dos mestres Hans Zimmer e James Newton Howard. A trilha age como um personagem extra, que sabe exatamente quando entrar e sair de cena e dá o tom de iminência que o filme pede. É quase sobrenatural a forma como ela atinge a platéia e marca o que está por vir em tela.
Ponto também para as atuações. É notável como Bale está mais confortável na pele de Bruce Wayne/Batman e como a experiência de dois anos após o surgimento do Homem-Morcego em Gotham está estampada no personagem. Ele sabe o que faz, sabe onde aterrisar (ou cair) e parece ter sempre o controle da situação, tal qual o velho e conhecido Batman dos quadrinhos. Aaron Eckhart sobressai ao imprimir carisma e impetuosidade ao promotor Harvey Dent, que está prestes a passar por uma prova de fogo que os fãs do Homem-Morcego conhecem muito bem. Gary Oldman na pele de Gordon continua competente e humano (como sempre), assim como os sempre excelentes e oscarizados Michael Caine e Morgan Freeman, que são como atiradores de elite: nunca erram. Aliás, ao passo que Alfred (Caine) ganha menos tempo de tela, Lucius Fox atua muito mais, inclusive, ajudando o vigilante de Gotham em uma missão internacional. Maggie não faz muita diferença, mas acredito que seja porque Rachel Dawes não seja uma personagem tão contundente quanto os demais. Pelo menos ela se sai melhor que Katie Holmes, que não pôde reprisar o papel por problemas de agenda.
O Coringa, então...
Acertadamente, os roteiristas optaram por não abordar a origem deste ser enigmático, tornando-o absoluto. É complicado admitir que o finado Heath Ledger merece um parágrafo inteiro somente para enumerar sua brilhante atuação. Não. A palavra “brilhante” desmerece o trabalho inumano feito na pele do criminoso mais peculiar de todos os tempos. Já tínhamos visto todos os tipos de Coringas: desde o espalhafatoso Coringa de Cesar Romero, até o charmoso e mortal criminoso que, até semana passada, tinha sido imortalizado por Jack Nicholson (Jack quem?), mas este novo Coringa faz qualquer um comer poeira. Ele é mau. É doente. É sarcástico. Mas nunca presunçoso. Ele é um homem de gostos simples (como ele mesmo diz num determinado momento). É engraçado, mas ninguém ousa rir. Por quê? Porque ele é assustador. Além de tiques, do modo de andar, de se vestir, de pensar e de matar, o Coringa de Heath Ledger possui algumas das melhores falas já vistas ultimamente no cinema. Ponto para os Irmãos Nolan, que rechearam o filme com diálogos afiados e antológicos e nos presentearam com cenas que fizeram meu queixo cair uma pá de vezes. Essa trupe nos trouxe um criminoso perfeito, que não tem medo, nem qualquer motivação nobre para fazer o que faz. Ele é o que é. Um produto de si mesmo, que impõe seu ponto de vista goela abaixo e vai até as últimas consequências para colocar suas idéias insanas à prova. Diante de personagem tão complexo, Heath Ledger acabou fazendo história. Como um amigo meu comentou, foi até justo o ator ter batido as botas, pois ele jamais conseguiria fazer algo melhor depois disso. O duro é admitir que talvez ninguém mais consiga.
Embora a atuação de Heath Ledger tenha sido inacreditável, acho um pouco injusto dizer que o filme é somente dele, ou que ele seja a alma do longa. O Coringa é sim a encarnação física do problema (ou talvez o catalizador dele), mas acredito que o excelente roteiro dos Nolan, bem como uma direção lúcida e um elenco de primeira, todos em sinergia, criaram algo maior do que um grande filme. Quando saí do cinema, me perguntaram se eu tinha gostado de Batman – O Cavaleiro das Trevas. Eu só conseguia dizer “Bacana!”, mas ainda estava em transe. Dois dias depois, constato que Christopher Nolan, Heath Ledger e todos que, de uma forma ou de outra, contribuíram para a produção deste filme, transformaram a saga do vigilante de Gotham em um épico.
Talvez o maior épico cinematográfico dos últimos tempos...
***
Dica de Filme:
Elenco: Christian Bale (Bruce Wayne/Batman), Heath Ledger (Coringa), Aaron Eckhart (Harvey Dent), Gary Oldman (Jim Gordon), Michael Caine (Alfred Pennyworth), Maggie Gyllenhall (Rachel Dawes), Morgan Freeman (Lucius Fox), Eric Roberts (Salvatore Maroni)
Duração: 142 minutos
Gênero: Aventura
Ano: 2008
Preciso dizer mais?
Além de estourar alguns recordes em sua estréia, o longa traz todos os predicados que fizeram do último filme um sucesso de público e, principalmente, de crítica, e vai além: eleva estes predicados a um patamar que ficará difícil de ser superado.
O nome desse milagre, claro, é Christopher Nolan. O diretor e roteirista britânico não se contentou em imprimir realidade ao universo de Batman. Ele redefiniu história, personagens, dramas e criou uma mitologia que disseca o estígma do Morcego como um sapo. A habilidade de Nolan com filmes cerebrais já era incontestável. Desta vez, seu produto alcançou um status nunca visto antes nas telas em filmes de “super-heróis”, mas já retratado nos quadrinhos através de histórias viscerais como A Piada Mortal de Alan Moore ou Batman: Cavaleiro das Trevas de Frank Miller.
Começa com a escolha do nome do filme. Os fãs de HQs chiaram com o fato de Nolan ter roubado o título da obra-prima de Miller, mas depois de se assistir ao longa (e ao seu desfecho), há de se admitir que tal escolha é mais que justificada. Talvez até tenha sido a única alternativa. Além disso, Batman – O Cavaleiro das Trevas não é um filme sobre Batman. Na verdade, é possível que ele nem seja o personagem principal desta história fantástica. Se fosse arriscar, diria que é um filme sobre pessoas em um dia ruim, sobre o fundo do poço e até onde algumas dessas pessoas ousam ir para fazer o que é certo ou o que julgam ser certo (mesmo que este “certo” seja explodir dois navios cheios de gente para fazer um “experimento social”).
A figura do Batman entra em xeque quando percebe-se a tal “evolução” pré-anunciada pelo Tenente Gordon (Gary Oldman) no filme anterior: “se usamos semi-automáticas, eles revidam com automáticas. Se usamos Kevlar, eles usam munição perfurante. Se um vigilante usa máscara para combater o crime...” O surgimento de pessoas inspiradas pelo Homem-Morcego, tanto para o bem quanto para o mal, acaba mostrando a necessidade de Gotham City em ter um novo tipo de herói: alguém de cara limpa, que caminha dentro da lei e, mesmo assim, consegue fazer justiça. Neste contexto, entra em cena o carismático promotor público Harvey Dent (Aaron Eckhart), auxiliado pela assistente de promotoria Rachel Dawes (Maggie Gyllenhall, substituindo a insonsa Katie Holmes). Com a lei, alguma ousadia e nada mais que isso, Dent consegue colocar metade dos criminosos de Gotham atrás das grades em uma tacada só, dando um fio de esperança ao povo de Gotham e ganhando o apelido de “Cavaleiro Branco”.
É claro que a festa acaba (ou começa) quando o Coringa (Heath Ledger) entra na parada para promover o caos, a anarquia e abrir muitos sorrisos. A cena inicial de um assalto a banco é uma das melhores e mais engenhosas que já vi. Por ser simples, por ser sóbria e, mesmo assim, por ser a cara do Palhaço do Crime. Genial, mas dá apenas uma noção do abacaxi que Batman, Gordon, Dent e o povo de Gotham terão de descascar para manter sua sanidade. Aliás, talvez este filme também seja sobre isso: a luta pela sanidade de uma cidade mergulhada no crime. Não de um modo químico, como visto no filme anterior, mas um duelo moral, psicológico, que joga todos os personagens num microscópio. Bruce Wayne (Christian Bale), mais rico e poderoso do que nunca, fica em dúvida se o Batman ainda se faz necessário. Jim Gordon sofre ao constatar que, mesmo comandando um Departamento de Polícia, não pode confiar em ninguém. Harvey Dent rema contra uma maré impossível e carrega o fardo de ser um arauto de mudanças numa cidade em estado de sítio. Até mesmo o inventor Lucius Fox (Morgan Freeman) tem um embate ético com Bruce Wayne acerca da utilização de um de seus equipamentos, numa versão de “o fim justifica os meios”. O Coringa? Ah, esse aí joga todos os outros no liquidificador só pra ver que gosto vai ter...mas falarei mais do Coringa logo adiante...
Além do roteiro conciso e de uma direção muito mais caprichada nas cenas de suspense do que na ação (que, embora não comprometa, nunca foi o forte de Nolan), o filme nos traz excelente produção e trilha sonora. A arte se puxou na confecção da estética e na representação dos personagens e de Gotham, que tem muito mais cenas de dia do que de noite. Os efeitos de explosão foram feitos à moda antiga, num único take, bem como a cena do caminhão capotando. O mais interessante é que não há cenas ou ações desnecessárias no longa. Tudo tem o embasamento certo dentro da narrativa, que é pontuada pela excelente trilha sonora dos mestres Hans Zimmer e James Newton Howard. A trilha age como um personagem extra, que sabe exatamente quando entrar e sair de cena e dá o tom de iminência que o filme pede. É quase sobrenatural a forma como ela atinge a platéia e marca o que está por vir em tela.
Ponto também para as atuações. É notável como Bale está mais confortável na pele de Bruce Wayne/Batman e como a experiência de dois anos após o surgimento do Homem-Morcego em Gotham está estampada no personagem. Ele sabe o que faz, sabe onde aterrisar (ou cair) e parece ter sempre o controle da situação, tal qual o velho e conhecido Batman dos quadrinhos. Aaron Eckhart sobressai ao imprimir carisma e impetuosidade ao promotor Harvey Dent, que está prestes a passar por uma prova de fogo que os fãs do Homem-Morcego conhecem muito bem. Gary Oldman na pele de Gordon continua competente e humano (como sempre), assim como os sempre excelentes e oscarizados Michael Caine e Morgan Freeman, que são como atiradores de elite: nunca erram. Aliás, ao passo que Alfred (Caine) ganha menos tempo de tela, Lucius Fox atua muito mais, inclusive, ajudando o vigilante de Gotham em uma missão internacional. Maggie não faz muita diferença, mas acredito que seja porque Rachel Dawes não seja uma personagem tão contundente quanto os demais. Pelo menos ela se sai melhor que Katie Holmes, que não pôde reprisar o papel por problemas de agenda.
O Coringa, então...
Acertadamente, os roteiristas optaram por não abordar a origem deste ser enigmático, tornando-o absoluto. É complicado admitir que o finado Heath Ledger merece um parágrafo inteiro somente para enumerar sua brilhante atuação. Não. A palavra “brilhante” desmerece o trabalho inumano feito na pele do criminoso mais peculiar de todos os tempos. Já tínhamos visto todos os tipos de Coringas: desde o espalhafatoso Coringa de Cesar Romero, até o charmoso e mortal criminoso que, até semana passada, tinha sido imortalizado por Jack Nicholson (Jack quem?), mas este novo Coringa faz qualquer um comer poeira. Ele é mau. É doente. É sarcástico. Mas nunca presunçoso. Ele é um homem de gostos simples (como ele mesmo diz num determinado momento). É engraçado, mas ninguém ousa rir. Por quê? Porque ele é assustador. Além de tiques, do modo de andar, de se vestir, de pensar e de matar, o Coringa de Heath Ledger possui algumas das melhores falas já vistas ultimamente no cinema. Ponto para os Irmãos Nolan, que rechearam o filme com diálogos afiados e antológicos e nos presentearam com cenas que fizeram meu queixo cair uma pá de vezes. Essa trupe nos trouxe um criminoso perfeito, que não tem medo, nem qualquer motivação nobre para fazer o que faz. Ele é o que é. Um produto de si mesmo, que impõe seu ponto de vista goela abaixo e vai até as últimas consequências para colocar suas idéias insanas à prova. Diante de personagem tão complexo, Heath Ledger acabou fazendo história. Como um amigo meu comentou, foi até justo o ator ter batido as botas, pois ele jamais conseguiria fazer algo melhor depois disso. O duro é admitir que talvez ninguém mais consiga.
Embora a atuação de Heath Ledger tenha sido inacreditável, acho um pouco injusto dizer que o filme é somente dele, ou que ele seja a alma do longa. O Coringa é sim a encarnação física do problema (ou talvez o catalizador dele), mas acredito que o excelente roteiro dos Nolan, bem como uma direção lúcida e um elenco de primeira, todos em sinergia, criaram algo maior do que um grande filme. Quando saí do cinema, me perguntaram se eu tinha gostado de Batman – O Cavaleiro das Trevas. Eu só conseguia dizer “Bacana!”, mas ainda estava em transe. Dois dias depois, constato que Christopher Nolan, Heath Ledger e todos que, de uma forma ou de outra, contribuíram para a produção deste filme, transformaram a saga do vigilante de Gotham em um épico.
Talvez o maior épico cinematográfico dos últimos tempos...
***
Dica de Filme:
Batman - O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight)
Diretor: Christopher NolanElenco: Christian Bale (Bruce Wayne/Batman), Heath Ledger (Coringa), Aaron Eckhart (Harvey Dent), Gary Oldman (Jim Gordon), Michael Caine (Alfred Pennyworth), Maggie Gyllenhall (Rachel Dawes), Morgan Freeman (Lucius Fox), Eric Roberts (Salvatore Maroni)
Duração: 142 minutos
Gênero: Aventura
Ano: 2008
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